Traduzido de Almudi, por Caroline Neves
O ano Amoris Laetitia convocado pelo Papa Francisco é marcado pelos grandes desafios da instituição da família na sociedade atual.

O dia 19 de março foi o escolhido por Francisco para a inauguração do Ano “Família Amoris Laetitia”, por ocasião do quinto aniversário da publicação desta exortação apostólica e com o objetivo de repensar o conteúdo de uma realidade comum como é a família.
É provável, diz o jornalista David Brooks, que a estrutura familiar esteja sofrendo sua mais rápida transformação na história da humanidade. As causas são ao mesmo tempo econômicas, culturais e institucionais. Valorizamos muito a privacidade e a liberdade individual. Queremos estabilidade e raízes, mas também mobilidade e liberdade para adotar o estilo de vida que escolhemos. Queremos famílias próximas, mas não as limitações legais, culturais e sociológicas que as tornaram possíveis. Um novo paradigma familiar é procurado, mas enquanto isso reinam a confusão e a ambivalência.
Desafios familiares
Entre os “desafios das famílias”, Francisco denuncia na sua encíclica a “cultura do provisório”, manifestada na “rapidez com que as pessoas passam de uma relação afetiva a outra”, resultado inequívoco de uma desinstitucionalização da família, de um maior aumento da autonomia, da busca pela realização e satisfação pessoal. Tratar-se-ia de um cenário de multiplicação de itinerários familiares, de trânsitos, onde uma pessoa passa do namoro para a coabitação, voltando ao namoro e casando, tendo filhos, separando-se e divorciando-se, morando só com filhos, voltando a coabitar com um novo parceiro e o filhos de ambos, ad infinitum.
À queixa sobre a precariedade dos laços familiares, o Papa acrescenta seu desconforto pelas “várias formas de uma ideologia genericamente denominada de gênero”, que procura “impor-se como um pensamento único que determina até a educação dos filhos”. O antecedente da ideologia de gênero encontra-se no Emílio de Rousseau, em que a educação dos filhos se realiza “na ausência de qualquer relação orgânica entre maridos e esposas, e entre pais e filhos”, criando para o estado de alma dos alunos o que Allan Bloom, em The Closure of the Modern Mind, chamará de psicologia da separação, o isolamento peculiar em que cada um desenvolve um pequeno sistema próprio, à parte. O divórcio será o termo lógico e o sinal mais visível de nossa crescente separação.
Eu valorizo o feminismo quando ele não reivindica uniformidade ou a negação da maternidade.
Papa Francisco
Diante do esforço de abolir e penalizar a distinção entre o masculino e o feminino, Francisco abordará também em Amoris Laetitia a necessidade do pai e da mãe em cada família, sublinhando a importância da diferença: “o claro e a boa presença definida pelas duas figuras, feminina e masculina, cria o ambiente mais adequado para o amadurecimento da criança ”. O Papa rejeita abertamente o feminismo de gênero: “Eu valorizo o feminismo quando ele não reivindica uniformidade ou a negação da maternidade.” Na realidade, a ideologia de gênero não defende a diversidade, mas a uniformidade que elimina o papel da mãe, a maternidade entendida como uma condição anterior à cultura, à sociedade ou aos ideários políticos. O feminismo de gênero apoia a subversão da identidade (“a identidade é escolhida”), defende a liberdade desvinculada da verdade, elimina a distinção dos sexos, deixando de ser signos de masculinidade e feminilidade da natureza para se colocar em uma indeterminação cultural. O discurso construtivista ou relativismo cultural e moral tem sua gênese em Comte, para quem o social é a categoria onde todos os outros adquirem sentido e concretude: tudo (ações, relações, formas de relacionamento) é legítimo se for “construído” socialmente.
O Papa também alerta contra a propaganda do “sexo seguro”, um estilo de vida que “transmite uma atitude negativa em relação ao propósito procriador natural da sexualidade”. O uso generalizado de anticoncepcionais trouxe consigo quatro resultados que Paulo VI coletou na encíclica Humanae Vitae: uma diminuição dos padrões morais, um aumento da infidelidade e dos filhos ilegítimos, uma redução das mulheres como objetos de prazer e a atividade coercitiva dos governos em questões reprodutivas. Ou seja, o que aconteceu nos últimos 50 anos são consequências da dissociação entre amor, casamento, sexo e procriação.
Francisco sugere que em situações de coabitação, como no casamento civil ou casais divorciados, a Igreja deve “acompanhar, discernir e integrar” as pessoas que se encontram nestes casos para que “superem as carências e participem na vida da Igreja ”. Quanto à possibilidade de comungar aos divorciados recasados, Francisco insistirá, sem oferecer nenhuma disciplina nova, em oferecer a todos a misericórdia de Deus e tratar cada caso com atenção. O Papa dirá que nem toda pessoa em uma dessas circunstâncias irregulares está em pecado mortal, acrescentando dois esclarecimentos: primeiro, assim como as normas não podem abranger todos os casos concretos, nem o caso concreto pode ser elevado à norma; em segundo lugar, “compreender situações excepcionais nunca implica ocultar a luz do ideal mais pleno ou propor menos do que Jesus oferece ao ser humano”.
A forma de valorizar a família é reviver o compromisso religioso, renunciando ao casamento como realização pessoal e descobrindo o sacrifício enraizado no divino.
Rod Dreher
Casamento e família
A mutação antropológica e sociocultural por que passam o casamento e a família está longe de se assemelhar à verdadeira natureza da família, que, nas palavras de João Paulo II, é communio personarum, comunidade originária de pessoas, comunidade para a formação das pessoas; não uma mera associação de relações humanas individuais, mas uma unidade de convivência, uma “participação no comum”, uma comunicação de uns com os outros, um verdadeiro quadro educativo de relações interpessoais. A nova situação tem consequências mais devastadoras para os idosos, as crianças e os doentes, que perderam o apoio que outrora proporcionava à família e à comunidade.
A deterioração institucional implica o desaparecimento de normas e valores que até recentemente constituíam o mundo vivido (não se deve esquecer que o casamento religioso está desaparecendo). O declínio insuportável da taxa de natalidade exige não só uma mudança nas condições econômicas, mas acima de tudo uma mudança cultural e espiritual, uma transformação capaz de transcender o hedonismo e a secularização para ser regida pelo sacrifício firmemente enraizado no divino. Assim o descreve o americano Rod Dreher, autor de The Benedict Option: “a forma de valorizar a família é reviver o compromisso religioso, renunciando ao casamento como realização pessoal e descobrindo o sacrifício enraizado no divino”.
O matrimônio e a família entendidos como “verdadeiro caminho de santificação na vida cotidiana”, servirão a Francisco para oferecer a mensagem final da Exortação como um convite à esperança: “Avancemos, famílias; continuemos a caminhar! Aquilo que se nos promete é sempre mais. Não percamos a esperança por causa dos nossos limites, mas também não renunciemos a procurar a plenitude de amor e comunhão que nos foi prometida.”