Os Irmãos Karamazov: necessidade e liberdade (por Rafael Ruiz)

A liberdade e a dor humana são os temas que mais recorrentemente aparecerão na literatura moderna e nos grandes escritores dos dois últimos séculos: Tolstoi, Kafka, Thomas Mann, Camus e Sartre… Com Os Irmãos Karamazov, Dostoievski tocou num ponto nevrálgico da questão: Por que somos livres? Por que o Criador nos fez assim? Será que o homem deseja realmente ser livre?

  1. A QUESTÃO DA LIBERDADE

No mais famoso e último romance de F. Dostoievski, Os irmãos Karamazov, aparece um “poema” – assim o denomina o seu autor, embora o texto tenha aspecto de conto –, narrado por Ivan Karamazov e denominado “O Grão-Inquisidor”. À primeira vista, dá a impressão de estar fora de contexto, mas, como afirma Romano Guardini, “encontra-se, na verdade, em estreita ligação com o todo”1.

Dos vários ângulos sob os quais se poderia analisar esse poema, quero limitar-me apenas a um que, parece-me, tem uma importância decisiva ao contemplarmos o mundo e a literatura contemporânea. Trata-se da questão da liberdade.

Não há como negar que a liberdade tem sido um dos valores mais procurados desde a Revolução Francesa. Os séculos XIX e XX assistiram a todo tipo de movimentos sociais, econômicos e políticos a favor e contra a liberdade. Filósofos, sociólogos, pensadores, políticos e escritores deixaram-nos os seus pensamentos sobre o tema. E, dentro desse contexto, encontramos as palavras de um dos irmãos Karamazov, precisamente o revoltado Ivan, que tocam o ponto nevrálgico da questão: Por que somos livres? Por que o Criador nos fez assim? Será que o homem deseja realmente ser livre?

Digo que é o ponto nevrálgico da questão porque a maior parte dos que escrevem sobre a liberdade aceitam-na como um postulado, um ponto de partida, enquanto Dostoievski vai à raiz do problema: porque devemos ser livres?

Parece uma pergunta desconcertante. Estamos acostumados a ser livres ou, pelo menos, a reivindicar os nossos direitos, quede correm da liberdade. Todos queremos, no fim das contas, poder fazer as coisas do nosso jeito, sem interferências alheias. Todos concordamos com o fato de que a nossa liberdade de ação vai até onde começa a liberdade de ação dos outros; pelo menos, foi assim que fomos educados na sociedade liberal democrática. Talvez não saibamos muito sobre definições filosóficas da liberdade, mas o fato é que, por princípio, gostaríamos de ser livres.

Por que, então, Dostoievski se questiona sobre a necessidade da liberdade?

 

  1. O PROBLEMA DO SOFRIMENTO

O “poema” é uma resposta de Ivan ao seu irmão Aliocha. Enquanto Ivan é um revoltado, Aliocha é o melhor dos irmãos. Tenta continuamente manter a unidade familiar e preocupa-se com as atitudes violentas de Dimitri e de Ivan. Ambos tinham discutido sobre o sentido do sofrimento.

Aliás, a liberdade e a dor humana são os temas que mais recorrentemente aparecerão na Literatura moderna e nos grandes escritores dos dois últimos séculos. Tolstói, em Guerra e Paz, traça considerações sobre a liberdade humana e a intervenção divina na História para explicar as calamidades da invasão napoleônica na Rússia. Kafka mostra-nos nos seus romances o sem-sentido de um mundo livre em que impera a ordem caprichosa da moral burguesa. Thomas Mann, no seu Dr. Faustus, disseca com acuidade as funestas consequências de quem livremente vende a sua alma ao demônio para poder executar a obra-prima que o torne imortal. Os existencialistas, Camus e Sartre, por exemplo, revoltam-se contra uma liberdade que, em si mesma, já é sofrimento, pois exige de nós, no ato da escolha, ter de renunciar a todas as outras opções… Por que essa curiosa repetição do tema? Parece-me que todos os autores estão convencidos de que há uma estreita união entre o sofrimento e o exercício da liberdade humana.

Ivan põe imediatamente o dedo na chaga. Há um sofrimento para o qual não encontramos sentido facilmente: o sofrimento dos inocentes. Os adultos são culpados, por um motivo ou por outro, e merecem sofrer. Todos carregamos uma certa parcela de culpa; mas o que dizer das crianças?

“Os homens são os únicos culpados: tinham-lhes dado o paraíso, cobiçaram a liberdade e arrebataram o fogo do céu, pensando que seriam felizes; não merecem, pois, nenhuma compaixão” (Abril Cultural, São Paulo, 1970, pág. 183. Todas as citações do romance foram tiradas desta edição).

O homem moderno não se satisfaz com o que tem. Quer tudo. Qual novo Prometeu, quer até o “fogo do céu”. Quer avidamente, compulsivamente, como se a sua felicidade estivesse exclusivamente em locupletar-se com o maior número de bens. E, sendo assim, também qual Prometeu, é justo que pague com o sofrimento. Mas será que se pode dizer o mesmo daqueles que são inocentes?

Ivan vai contar uma história. Acabara de ler uma história dos começos do século XIX. Naquela época, os grandes senhores distinguiam-se socialmente pelo número de almas que dependiam deles. E havia um general que tinha duas mil almas. Duas mil almas e várias centenas de galgos, precisa Ivan.

Um dia, uma criança de oito anos, filho de um dos seus empregados, divertia-se jogando pedras aos cães do general e acabou por ferir um deles. O general encolerizou-se e decidiu aplicar ao garoto uma punição exemplar: convocou a mãe e o garoto, ordenou que a criança fosse despida e gritou-lhe que começasse a correr. Em seguida, o general açulou a matilha. Os cães acabaram por estraçalhar o menino diante da mãe.

Eis o ponto de partida de Ivan: Para quê, por quê tudo isso? De que adianta dizer que toda essa dor é merecida? Quem merece isso? A mãe? Acriança?

Ivan sabe a resposta que Aliocha, o bom do Aliocha daria. Seria uma resposta cristã: há um sentido purificador da dor, que muitas vezes permanece oculto aos nossos olhos. Outro pensador da primeira metade do século, C.S. Lewis, costumava afirmar que a dor é “o megafone de Deus” para acordar, para sacudir um mundo que vai ficando cada vez mais e mais surdo 2. Porém, ainda segundo Lewis, os ofrimento não aceito pode “levar à rebelião final, sem dar lugar aoarrependimento”3.

E Ivan sabe disso. Ivan, o grande revoltado, não está disposto a aceitar que, na vida futura todos aqueles que sofreram aqui na terra venham a entender e agradecer as suas penas.

“Compreendo como o Universo estremecerá quando o céu e aterra se unirem no mesmo grito de alegria, quando tudo o que vive ou viveu proclamar: «Tens razão, Senhor Deus; agora as tuas vias nos são reveladas!», quando o carrasco, a mãe e o menino se beijarem e declararem com lágrimas: «Tens razão, Senhor Deus!» Sem dúvida, então, a luz se fará e tudo será explicado. Mas eis a dificuldade: não posso admitir tal solução” (pág.183).

Não é, portanto, que Ivan não entenda o problema da dor; não se trata aqui de que Ivan não perceba que há um sentido transcendente para entender o sofrimento humano. Trata-se simplesmente de um pré-conceito – algo concebido de antemão –, um postulado prévio: Ivan não quer admitir essa solução, assim como Sartre não queria admitir a existência de Deus. Trata-se também de um postulado. Aliás, Ivan sabe que o que disse poderá acontecer e que até ele próprio, uma vez ressuscitado e na luz da verdade de Deus, terá de admiti-lo.

“Vendo a mãe beijar o carrasco do seu filho, [direi]: Tu tens razão, Senhor Deus. Mas será contra minha vontade”(ibidem).

Nessa altura, Ivan passa a ler o seu poema a Aliocha. Por que, especificamente nessa altura? Por dois motivos.

Por um lado, Dostoievski acaba de delimitar assim as fronteiras do problema: existe dor e sofrimento no mundo; há muita dor causada pela própria maldade humana: muitos a merecem, porque foram ou são vis e perversos; mas por que muitos outros – os inocentes –, devem padecer?

Por outro lado, Dostoievski divide a humanidade em dois tipos (veremos depois que faz exatamente o mesmo com a questão da liberdade): há aqueles que aceitam a dor com sentido cristão e afirmam a necessidade de imitar Cristo, que, sendo inocente, sofreu por todos para redimir a maldade humana. Estes sabem, portanto, que, no fim de tudo, os malvados e os inocentes se perdoarão e se beijarão, selando dessa forma a sua felicidade. E há aqueles que, como Ivan, se revoltam contra a dor dos inocentes; que não estão dispostos a aceitar essa explicação; que não a aceitam, mesmo que a própria realidade das coisas nela consista: “porque acho que não vale uma lágrima de criança”(ibidem).

 

III. A ESTRUTURA DE “O GRÃO-INQUISIDOR”

A argumentação teórica está estruturada com base nas três tentações de Cristo no deserto, antes de iniciar a sua pregação ao povo de Israel.

A ação transcorre em Sevilha, no século XVI, onde o Grão-Inquisidor, já nonagenário, exerce as suas funções. O dia chega ao fim. Trazem-lhe um prisioneiro. Quando o Inquisidor o vê, à luz de uma tocha, parece-lhe ver a Santa Face e pergunta, sem esperar resposta:

“– És tu, és tu?… Não digas nada. Cala-te!” (pág.187).

E começa a acusação que tem contra Ele, sem querer saber se se trata mesmo do Cristo ou de uma “aparência sua”.

Dostoievski novamente dividirá a humanidade em dois: os fracos – a grande maioria –, que têm medo da liberdade e que estão revoltados por serem assim, livres; e os fortes – uma pequena minoria–, dispostos a suportar o peso da liberdade.

“Para serem numerosos, deveriam ser mais do que homens, quase deuses. Suportaram a tua cruz e a existência no deserto, nutrindo-se de gafanhotos e de raízes; decerto, podes orgulhar-te desses filhos da liberdade, do livre amor, de seu sublime sacrifício em teu nome. Mas, lembra-te, não eram eles senão alguns milhares e quase deuses, e o resto? É culpa deles, dos outros, dos fracos humanos, senão puderam suportar o que suportam os fortes? É culpada a alma fraca por não poder conter dons tão terríveis?…” (págs.191-2).

E porá frente a frente os dois irmãos como representantes dos fracos revoltados – Ivan – e dos fortes livres –Aliocha.

  1. O homem não quer ser livre porque é egoísta.

É a primeira tentação do deserto: converter as pedras em pão. O pão que representa todos os bens materiais que o homem poderia conseguir. E precisamente por isso é que o homem tem medo de ser livre: porque não está disposto a compartilhar as coisas que possui.

“Não há e jamais houve nada de mais intolerável para o homem e a sociedade!” (pág.189).

O homem não está disposto a sair do seu egoísmo. Viver bem a liberdade – numa sociedade democrática– exige estar disposto a renunciar a comodismos mesquinhos, a possibilidades ambíguas que prejudiquem os outros; ser livre exige determinar-se a ajudar os outros e compartilhar os bens; porém, essa exigência é intolerável para o homem egoísta e calculador, fruto depurado da sociedade contemporânea.

“Compreenderão por fim que a liberdade e o pão da terra à vontade para cada um são inconciliáveis, porque jamais saberão reparti-los entre si! Convencer-se-ão também da sua impotência para ser livres sendo fracos, depravados, nulos e revoltados”(ibidem).

A liberdade não é para qualquer um, muito menos para aqueles que não conseguem dominar os seus caprichos. Não se consegue ser livre quando se é fraco. A liberdade é dom exclusivo dos homens de têmpera, que sabem discernir o que exige ajustiça e o bem-estar dos outros e livremente se dispõem a executá-lo.

Como muito bem aponta o filósofo canadense Charles Taylor, nota-se atualmente uma forte tendência para o egocentrismo, de maneira que os homens estão como que:

“procurando exclusivamente a realização do indivíduo ,convertendo os seus laços pessoais em algo puramente instrumental, levando [as relações sociais], em outras palavras, a um atomismo social. E tendem a considerar a realização como algo que interessa exclusivamente ao eu, descuidando ou deslegitimando as exigências que estão além dos nossos desejos ou aspirações”4.

Quando o que determina a ação do homem é o interesse mesquinho, o capricho fraco, a perversidade ou os devaneios egoístas, é impossível viver socialmente em paz e em harmonia. Por isso é intolerável para a sociedade que os homens sejam livres: porque há poucos homens com a têmpera necessária para assumir a responsabilidade decorrente das ações livres.

 

  1. O homem não quer ser livre porque prefere fugir da realidade

O homem verdadeiramente livre diante de uma encruzilhada da vida sabe ponderar os prós e os contras, sabe aceitar a incerteza da decisão e sabe decidir, assumindo os riscos do caminho adotado. O homem fraco, porém, assusta-se perante a incerteza: gostaria de que o mundo fosse diferente, de que o problema que enfrenta não apresentasse apenas três ou quatro saídas definidas, nenhuma delas absolutamente garantida…Não tem forças para assumir o risco e, por isso, não decide.

Se Cristos e tivesse curvado à segunda tentação, teria sido um ótimo exemplo para os fracos: ter-se-ia jogado do pináculo do templo e não teria sofrido nada, porque teria acontecido um milagre. E é isso o que os fracos querem: na hora da encruzilhada, tem de existir um milagre; na hora em que tudo parece naufragar, tem que dar certo.

“É próprio da natureza humana repelir o milagre e, nos momentos graves da vida, diante das questões capitais e dolorosas, agarrar-se à livre decisão do coração?”(pág.191)

É evidente, para Ivan, que a resposta é “não”. O homem prefere recorrer ao milagre porque

“é sobretudo o milagre que ele procura. E como não saberia passar sem ele, forja novos milagres, os seus próprios, inclinando-se diante dos prodígios de um mágico, dos sortilégios de uma feiticeira…” (pág.191).

O homem fraco prefere recorrer a qualquer coisa: cartas, búzios, tarô, cabala, números da sorte, quiromancia, deixar o tempo passar… a ter de enfrentar o risco pessoal de decidir livremente nos momentos cruciais da vida.

Dostoievski penetra fundo na intimidade da alma humana e aponta uma das características mais desconcertantes do homem “fraco e covarde” (ibidem): a revolta intranscendente; a insurreição com coisas de pequena importância.

“Que importa que no presente se insurja por toda a parte contra a nossa autoridade e se mostre orgulhoso da sua revolta? É o orgulho dos jovens escolares que se amotinaram em aula e expulsaram o seu mestre (…) Perceberão, por fim, essas crianças estúpidas, que são apenas fracos revoltosos, incapazes de revoltar-se por muito tempo”(ibid.).

A revolta por ninharias não compromete, não exige compromissos sérios por parte do homem. Reclamar porque se pode ou não se pode sair de carro nos dias pares? Enviar uma carta indignada ao jornal pela falta de cobertura que deram a determinada notícia?… É a isso, apenas a isso que aspira o homem “revoltoso” como ideal de Justiça!? E o nível do ensino? E a indolência dos alunos? E o desinteresse dos professores? E a desigualdade social que provoca tudo isso? E o descaso dos políticos, porque resolver esse problema não rende votos? E a desintegração moral veiculada pelas redes de tv? E a violência indiscriminada contra os mais fracos…? Para revoltar-se contra isso, não se pode ser fraco. Porque “comprar uma briga” nesse terreno exige compromissos pessoais, renúncias à tranquilidade e ao sossego, remar contra a correnteza do “politicamente correto”; exige, em última análise, ter a liberdade de recortar a própria liberdade em benefício dasociedade.

Por isso, os homens preferirão não ser livres. Cansados já de não ter uma meta digna, um destino que faça vibrar as fibras da alma, acabarão –como dizia Ortega y Gasset – “com um grito formidável por todo o planeta, que subirá, como o uivo de cães inumeráveis, até as estrelas, pedindo alguém ou algo que mande, que imponha uma tarefa ou uma obrigação” 5. Ou, como diz o próprio Ivan:

“Os homens regozijaram-se por serem de novo levados como um rebanho e libertados daquele dom funesto que lhes causava tantos tormentos” (pág. 192).

 

  1. O homem não quer ser livre porque prefere viver submisso.

É a derradeira tentação: a proposta de que Cristo adore Satanás em troca de todos os reinos do mundo. O homem que foge de assumir a responsabilidade da própria liberdade não tem outra escolha a não ser submeter-se à vontade de outrem, daquele que teve a capacidade de decidir e de assumir.

A liberdade humana, com os seus riscos e incertezas, produz vertigem nos temperamentos fracos, nos homens covardes.

“A independência, o livre-pensamento, a ciência tê-los-ão desviado num tal labirinto, posto em presença de tais prodígios, de tais enigmas, que uns, rebeldes furiosos, destruir-se-ão a si mesmos, e outros, rebeldes, porém fracos, multidão covarde e miserável, se arrastarão aos nossos pés, gritando: «Sim, tínheis razão, somente vós possuíeis seu segredo e nós voltamos a vós; salvai-nos de nós mesmos[…]». Compreenderão o valor da submissão definitiva. E enquanto os homens não a tiverem compreendido, serão infelizes” (pág.193).

É impressionante observar o panorama da história humana nas décadas que se seguiram a essas palavras. Ivan Karamazov profetiza que, por medo de usarem da sua liberdade, os homens adotarão duas saídas: a “submissão voluntária” –anos e anos de totalitarismo de esquerda ou de direita – ou a “destruição voluntária” – anos e anos de consumismo hedonista numa sociedade que empobrece sistematicamente o homem –. O destino final da sociedade? Uma massa amorfa, dominada pela febre do trabalho e do consumismo, de maneira a não permitir que haja um momento de liberdade sequer para poder pensar. E nas horas de lazer, o homem poderá usufruir de tudo aquilo que os que mandam têm preparado para ela: algo parecido com o embotamento audio-visual contemporâneo.

“Decerto, sujeitá-los-emos ao trabalho, mas nas horas de lazer organizaremos a sua vida como um brinquedo de criança, com cantos, coros, danças inocentes. Permitiremos até que pequem – são fracos – e nos amarão por causa disso como crianças. Dir-lhes-emos que todo o pecado será redimido, se for cometido com a nossa permissão…”(pág. 193).

Está sendo forjada, adverte Taylor, “uma nova forma especificamente moderna de despotismo, à qual Tocqueville chamava de despotismo suave. Não será uma tirania de terror e opressão. O governo será suave e paternalista”6.

 

IV.CONCLUSÃO

Dostoievski é um homem religioso. O poema é a explicitação da alma de Ivan Karamazov. E Ivan é um ateu convicto, ateu por opção e, por isso mesmo, revoltado contra a existência de Deus e contra o seu plano criador, no qual está incluído o dom da liberdade.

É estarrecedor pensar que, ao mesmo tempo em que Nietzsche escrevia a sua sentença da morte de Deus, Dostoievski fazia um alerta ao mundo: quando matamos a Deus ou quando nos revoltamos contra Ele, então, o homem torna-se carrasco e subjugador do próprio homem.

Se eliminarmos Deus das nossas vidas, não conseguiremos mais usar dos seus dons na medida e proporção conveniente. Por isso, num mundo afastado da divindade, a liberdade torna-se precária.

“Esqueceste-te, então, de que o homem prefere a paz e até mesmo a morte à liberdade de discernir entre o bem e o mal? Não há nada de mais sedutor do que o livre arbítrio, mas também nada de mais doloroso […]. Aumentaste a liberdade humana em vez de confiscá-la e assim impuseste para sempre ao ser moral os pavores dessa liberdade”(pág. 190).

Em nenhuma outra época na história da Humanidade os homens tiveram ao seu dispor tantos recursos técnicos: informações on line, precisão, exatidão, rotinas, livre acesso a fontes de informação distantes, bens de consumo a preços acessíveis…; mas talvez não tenha havido, por outro lado, nenhuma época em que os homens tenham sentido tanta falta de critérios determinados por outros para sobre eles basearem as suas escolhas. Somos uma sociedade que investiu maciçamente no desenvolvimento tecnológico, mas se esqueceu do desenvolvimento moral, de ensinar critérios de valor capazes de fundamentar as decisões.

É por isso que temos medo – pavor, diz Dostoievski – da liberdade: porque não conseguimos mais distinguir o bem do mal. Depois de anos e anos de relativismo cultural, pode-se chegar ao absurdo de pensar que dá na mesma dar uma esmola a um mendigo como deixá-lo morrer de fome. Temos argumentos lógicos e estatísticas que justificam ambas as atitudes! É claro que, se apresentamos as coisas desta forma, ainda resta algo de humano em nós que se insurge contra semelhante dicotomia, mas quantos de nós conseguiriam argumentar com clareza sobre o que é certo fazer e por que é certo fazê-lo?

A sociedade contemporânea perdeu o sentido da finalidade. Conseguimos chegar a um certo acordo – a um “pacto social” – sobre os meios e os procedimentos (o “como fazer”: procedimentos legislativos, burocráticos, judiciais), mas se perguntássemos a cada cidadão qual é o fim que se deve perseguir na sociedade, se questionássemos cada um sobre o “para quê” de tudo isso, dificilmente chegaríamos a qualquer acordo.

Essa dificuldade é uma consequência do desacordo com relação ao que é o bem. Já Platão, no seu diálogo Górgias, advertia que há uma   entre gosto e vontade, entre algo que me faz bem ou que me faz mal. E exemplificava: se para recuperar a minha saúde é necessário tomar um remédio do qual eu não gosto, a minha vontade – por um ato de decisão livre – pode querê-lo.

E Platão explicava que essa capacidade é precisamente a liberdade. A liberdade é a qualidade da vontade que permite a autodeterminação – a livre escolha –, tendo em vista o fim que me convém – o escopo, como dizia Platão.

Porém, a sociedade contemporânea anda um pouco desorientada sobre o sentido do fim, sobre o que convém ao homem para realizar-se verdadeiramente como homem.

“Nisto tu tinhas razão, porque o segredo da existência humana consiste não somente em viver, mas ainda em encontrar um motivo para viver. Sem uma ideia nítida da finalidade da existência, o homem prefere renunciar a ela, e assim se destruirá…” (pág.190).

A solução de Ivan Karamazov para escapar a essa renúncia e autodestruição dos que não encontram sentido para sua existência é o fim do diálogo com seu irmão Aliocha, imediatamente depois do “poema”. Solução citada por muitos e universalmente conhecida: “Tudo é permitido”. Ivan explica:

“– Tenho a força dos Karamazov… a força que eles hauremda sua baixeza.

“–Queres dizer: mergulhar na corrupção, perverter a alma? [pergunta Aliocha].

“–Poderia ser isso… mas talvez escape até os trinta anos, depois…

“– Como poderás escapar a isso com as tuas ideias?! [Aliocha refere-se ao «poema» que acabava de ler].

Por fim, Aliocha conclui amargamente:

“– Queres dizer, então, que «tudo é permitido», não é? (pág. 196).”

Vida sem esperança? Sem dúvida. Dostoievski coloca o dedo na ferida de todos os relativistas morais: se não há bem e mal, certo e errado; se não há uma finalidade que determine o critério das nossas escolhas; se não há Deus que ame o homem apesar de todos os seus erros e misérias, então “tudo é permitido”. Não há por que estabelecer ridículas e precárias regras de convivência, éticas de conduta ou normas de comportamento.

Sombria perspectiva para a Humanidade? Não. Na hora da despedida dos irmãos, Dostoievski deixa entrever um raio desesperança.

“Saíram. No patamar pararam.

“- Escuta, Aliocha –disse Ivan num tom firme –, se posso ainda amar os brotos da Primavera, será graças à tua lembrança. Bastar-me-á saber que estás aqui, emalguma parte, para retomar o gosto pela vida”(ibidem).

No fim do romance, Dostoievski traça o destino final dessas duas personagens: Ivan é o retrato do desespero. Durante uma alucinação, tem uma entrevista com o diabo, e, aos gritos, exclama:

“– Tu [dirigindo-se ao diabo] és eu mesmo, mas com outro focinho. Exprimes os meus próprios pensamentos…” (pág.444).

Aliocha, por sua parte, é a esperança. Ainda continua fiel à sua missão na família Karamazov, reunindo-se com todos e animando-os a ser “bons e honestos” (pág. 534).Em Aliocha “existe lugar para o próximo, lugar que lhe permite chegar a uma existência livre” 7. Aliocha é forte paraviver em liberdade e, por isso, sabe entregar-se aos outros, às exigências da sociedade; não está disposto a ser apenas um átomo social revoltado, porque, no fundo, sabe que “o homem não encontra afelicidade na liberdade, mas na aceitação de um dever”8.

 

NOTAS

(1)Romano Guardini, O mundo religioso de Dostoievski, ed. Verbo, Lisboa, 1973, pág.120.

(2) cfr. C.S. Lewis, O problema do sofrimento,Mundo Cristão, São Paulo, 1983, pág. 69.

(3)Ibidem.

(4)The malaise of modernity, trad. ao espanhol por PabloCarbajosa Pérez: La ética de la autenticidad, Paidós, Barcelona 1994,pág. 92.

(5) La Rebelión de las masas, Revista deOccidente, Madrid. 34º ed., 1960, pág. 200.

(6)Charles Taylor, op. cit., pág. 44.

(7) RomanoGuardini, op. cit., pág. 96.

(8) A. Gide, citado em A. López Quintás, Cómo formarseen Ética a través de la Literatura. Análisis estético deobras literarias, Rialp, Madrid, 1994, pág. 200.

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