A elegância: mais que boas maneiras

A elegância não deve ser uma característica puramente externa, mas vir de dentro, fruto da posse completa da própria interioridade. 

Imagino que o leitor esteja disposto a admitir que a dignidade humana é para nós uma questão importante, pois é hoje assunto de inúmeras páginas e discussões. Quase sempre se fala dela como um tema político, relacionado com o respeito a todos, os direitos humanos, como fundamento da ordem jurídica, o como uma exigência moral básica e inalienável que deve ser energicamente defendida para que a sociedade não se desumanize.

Entretanto, poucas vezes se ouve falar da dignidade num enfoque intimista e estético. E seria muito instrutivo. O leitor paciente e sofrido que estiver disposto a acompanhar-me poderá ver, espero, como a dignidade humana envolve também aqueles assuntos que enobrecem ou degradam a pessoa diante de si mesma e, consequentemente, diante dos outros, assuntos que afetam a autoestima de alguém e a consideração que esse alguém recebe daqueles que estão à sua volta. Comportar-se dignamente é algo que se aprende e que tem a ver com uma verdade simples e capital: o feio é indigno e vergonhoso, e deve ser ocultado ou substituído pelo belo e elegante. A presença do belo e do feio em nós mesmos é um componente fundamental da nossa dignidade.

Trata-se de uma questão que nos preocupa mais do que em principio estaríamos dispostos a admitir. O que as pessoas pensam de mim? Como me pareço? Será que não estou horrível? Será que acham que sou burro, velho, ou chinfrim? Alguém notou que a culpa foi minha? O que o meu chefe vai dizer? Vou passar por imbecil?

A gama de atitudes humanas que entram em jogo para preservar a nossa dignidade é extremamente rica. Talvez as mais importantes sejam a vergonha, o pudor e a elegância, embora existam muitas outras, intimamente ligadas a estas, de maneira que o nosso comportamento pode mesclá-las em expressões e reações que mostram toda a inesgotável riqueza do humano. Contudo, as três atitudes mencionadas são responsáveis por efetuar o percurso desde aquilo que é mais baixo – a feiura – até aquilo que é mais alto – a beleza –, através todos os pontos intermediários. trata-se de atitudes inseparáveis e misturadas entre si, que não temos escolha a não ser diferenciar a fim de obter uma certa compreensão delas.

A vergonha

“Ter a vergonha é sentir-se intrinsecamente mau, fundamentalmente feio como pessoa” (G. Kaufman). A vergonha é um sentimento espontâneo que a pessoa tem diante de si mesma ou dos outros quando algo nela, e portanto ela mesma, lhe parece feio, e portanto indigno e vituperável.

O sentimento de vergonha afeta assim o íntimo do homem e por isso é tão importante. A vergonha, por exemplo, desempenha um papel decisivo na formação de uma consciência moral reta, que faz com que nos sintamos bons ou maus, inocentes ou culpados. Também é decisiva ao longo do processo psicológico e social pelo qual conquistamos a posse pacífica da nossa identidade e somos reconhecidos e aceitos pelos outros. Além disso, a vergonha é um fator central nos desarranjos do funcionamento do “eu”. Por isso, como todo o sentimento, deve ser bem educada, pois, como acrescenta Kaufman, é “a fonte de uma autoestima insuficiente, do pobre conceito de si mesmo ou da má imagem corporal, da dúvida de si, da insegurança e da queda da autoconfiança”. Por isso “é a fonte dos sentimentos de inferioridade. A experiência interior da vergonha é como uma doença dentro do eu, uma dor da alma”, um tormento interior ou uma ferida que nos separa de nós mesmos e dos outros, isolando-nos em nosso enrubescimento.

A presença do feio e vergonhoso em nós arruína a estima alheia: “quando alguém fica com a cara no chão de vergonha, perde a sua honra”, prossegue o mesmo autor. Se o vergonhoso é o feio presente na pessoa, é compreensível porque os clássicos gregos diziam que o contrário de belo (kalón) era precisamente o vergonhoso ou torpe (aischrón). Quando vemos nos outros, ou até em nós mesmos, ações, gestos ou palavras ofensivos à sua dignidade ou à nossa, dizemos que se trata de algo vergonhoso. O indigno é sempre vergonhoso, e mesmo ofensivo, pois é um desrespeito consigo próprio e com os outros. Por isso, quem comete ações feias e indecentes não merece a nossa estima. A vergonha relaciona-se assim com os sentimentos de inferioridade e com a perda da estima.

O pudor

As poucas reflexões acima são suficientes para confirmar que a vergonha surge por causa da presença em nós de algo que consideramos indecoroso, e em última análise mau. Contudo, esse sentimento traz consigo um elemento mais positivo: “sentir vergonha é sentir-se visto de um modo dolorosamente mesquinho. A vergonha revela o eu interior e o deixa à mostra”. Esse “sentir-se visto” produz uma reação espontânea à “elevada visibilidade do eu”: a “urgência de esconder-se, de desaparecer”. “A experiência de parecer transparente é criada precisamente pela sensação de exposição que é inerente à vergonha”, continua Kaufman.

Quando uma pessoa se sente arbitrariamente tolhida da sua intimidade, que passa então a matéria pública, fica com vergonha e mesmo raiva. No entanto, o sentir-se indevida e involuntariamente “transparente” diante dos outros é uma manifestação de um segundo sentimento: o pudor, uma inclinação para cobrir a própria intimidade aos olhares estranhos. O pudor é o gesto e a reação espontânea de proteção do íntimo que precede a vergonha e lhe dá um sentido positivo. Por isso, tem uma relação forte com a dignidade, pois acentua a guarda da intimidade, faz-nos possuí-la mais plenamente, ser mais donos de nós mesmos. O pudor é uma manifestação da liberdade humana aplicada ao próprio corpo. Autodomínio significa dignidade pois implica liberdade, e esta significa acima tudo ser dono de si mesmo. O pudor é algo como que a expressão corporal espontânea do conhecido direito jurídico à intimidade e à própria dignidade.

Assim, talvez a maneira mais grave de destituir as pessoas da sua dignidade intrínseca é violar sua intimidade, isto é, expô-las e obrigá-las a revelar a sua intimidade a contragosto, muitas vezes por meio de coação física ou psicológica: expô-las à vergonha pública e privá-las da posse de algo que é só seu: o seu íntimo. Uma pessoa violada fica reduzida à escravidão e a uma gravíssima vergonha diante de si mesma: carrega dentro de si a presença invasora e violenta do estranho.

O pudor, ao proteger e manter escondida a nossa intimidade (é este o seu objeto), aumenta o caráter livre da manifestação externa do que somos e possuímos. O íntimo é doado livremente por que é possuído previamente. O pudico é mais senhor de si, valoriza mais a possibilidade de doar a sua interioridade. Na verdade, cuida mais dela quanto mais rica é. O pudor é, pois, o amor à própria intimidade, a inclinação a manter latente aquilo que não deve ser mostrado, a calar o que não deve ser dito, a guardar o dom e o segredo verdadeiros que não devem ser comunicados senão àquele a quem se ama. Amar, não o esqueçamos, é doar a própria intimidade. Por isso, diante do amado somos, deveríamos ser, sempre transparentes e autênticos.

É sabido que a intimidade define radicalmente a pessoa e que é uma curiosíssima e fascinante dualidade de fala e silêncio, de opacidade e transparência, de interioridade e exterioridade. A transparência pública e total significaria, nesse caso, perder toda a interioridade. O que é não apenas ofensivo para a pessoa como impossível. A interioridade é assim porque há nela algo latente e mudo para a exterioridade. O ser íntimo e irrepetível da pessoa pode iluminar com a sua presença os olhos ou o rosto que se tornam transparentes e deixam ver esse fundo interior e único que lhes assoma. Mas esse ser sempre vai além, nunca pode ser completamente externado, sempre ficará algo que continuará a iluminar o rosto, para continuar a amar por meio do olhar. O pudor é o ferrolho que abre e fecha por dentro o umbral por que chegamos à pessoa. É algo que se nos dá, se é justo que o recebamos, e não podemos forçá-lo; se o fazemos, penetramos um território que não nos pertence. O convite marca um chamado verdadeiro. Aquele que convida, sai ao umbral da sua intimidade e nos procura, franqueando a entrada à sua intimidade a que somos convidados a adentrar pela primeira vez.

Todavia, cabe perguntar: até que ponto chegam as portas do íntimo? O pudor estende-se à medida delas. É preciso dizer que o pudor não inclui apenas a interioridade espiritual ou psíquica, mas também o corpo, pois ele e o que a ele se refere fazem parte da nossa intimidade: as roupas, as ações, os gestos e movimentos corporais (comer, limpar-se, etc.). O pudor estende-se também à casa e, em geral, à linguagem expressiva, pois ambos são âmbitos de manifestação do íntimo, o lugar onde a pessoa vive consigo própria.

Por ser o corpo parte da intimidade, o pudor tem um aspecto de resistência à nudez, como um convite a buscar a pessoa para além do seu corpo (ideia do pensador italiano Giorgio Campanini). Por meio de atos e gestos pudicos, tão próximos à vergonha, a pessoa recusa que seu corpo seja tomado, por assim dizer, separado da pessoa que o possui, como uma simples coisa, um instrumento ou objeto de desejo para aquele que o olha impudica ou curiosamente. O ato de pudor é, no fundo, um pedido de reconhecimento, como se disséssemos: “Não me tomes pelo que de mim vês descoberto; toma-me como a pessoa que sou”.

A nudez anônima

O pudor surge no ato pelo qual a pessoa se faz presente no seu corpo nu. Uma nudez é impudica quando, por assim dizer, não é de ninguém e de todos ao mesmo tempo: é anônima, disponível para quem quiser. Se uma pessoa acha indiferente despir-se e mostrar sua nudez, não está no seu corpo, que se converte numa mera imagem de si mesma, que não remete a ninguém. O corpo está então sem dono, abandonado ou mesmo em oferta, objeto decorativo ou produto em venda. O corpo separado da pessoa é um corpo prostituído, vendido a preço baixo, mercadoria. O pudor permite ver a pessoa com perspectiva, para além da mera epiderme em que parecem ter se convertido aqueles que se convertem num enfeite solto sem cuidar da transparência dos seus panos ou da aderência firme das joias.

Despir-se obedece quase sempre a razões térmicas, de comodidade. Entretanto, o caráter sexuado do corpo dá naturalmente à nudez um aspecto erótico, variável de acordo com as circunstâncias. Querer ignorar essa realidade natural supõe reduzir a sexualidade a um mecanismo, uma função fisiológica sujeita a “técnicas”. O caráter sexuado do corpo desempenha um papel nas relações humanas que não é necessário explicar aqui, e que desperta a atração entre o homem e a mulher, dando origem a tipos de comportamento, entre eles a sedução. O modo de mostrar o caráter sexuado do corpo, e também as regras para esses tipos de comportamento, é regulada por um pudor especial: o sexual.

O leitor perguntará então comigo: por que os órgãos sexuais são objeto de um pudor especial? A pergunta é completamente pertinente, mas é impossível respondê-la aqui de modo cabal. A única coisa que me atrevo a dizer é que isso é assim por uma razão muito profunda, e muito mal compreendida hoje em dia: a sexualidade é algo especialmente íntimo. Se o leitor me permitir não explicar o que quer dizer esse “especialmente” e me conceder a confiança de aceitá-lo, então a questão fica mais simples: se a sexualidade é algo tão íntimo, deve ter muito a ver com o dom da intimidade chamado amor. Estando o amor e a sexualidade unidos, o sexual é profundamente íntimo e objeto desse pudor especial. Parece uma afirmação inocente, mas não é, pois contém muitas implicações, que podem ser resumidas nessa ideia intuitiva: o homem e a mulher relacionam-se sexualmente entre si de modo amoroso e donal, e não como animais que acasalam.

Assim, pois, o pudor é a regra que preside a manifestação própria ou imprópria da interioridade. Em certo sentido, cabe afirmar sem dificuldade que é uma virtude. O impudico costuma ser um sem-vergonha, pois não conhece o limite entre o decente e o indecente, entre o que é e o que não é oportuno e conveniente mostrar. Noutras palavras: o indecente é intolerável e mesmo ofensivo. A ideia de que a decência é um valor antigo, hoje felizmente desaparecido, não parece estar refletida na vigência real do intolerável que vemos por toda a parte nos novos costumes e regulamentações, que tratam de assuntos e valores distintos, talvez mais triviais e exteriores que os antigos.

A perda do sentido da decência, a incapacidade de perceber o limite do vergonhoso como algo que protege os valores comuns da nossa sociedade, e que por isso deve ser protegido, só pode ser causado por um enfraquecimento da interioridade, por uma perda do valor do íntimo e, por conseguinte, um aumento do superficial, do exterior. Estritamente isso significa pobreza e logo tédio. Quem não sente necessidade de ser pudico carece de intimidade e assim vive na superfície e para a superfície, esperando os outros na epiderme, sem a possibilidade de descer a si próprio. Os frívolos não necessitam do pudor porque não têm nada que guardar. Por isso são tão fofoqueiros; falam muito, mas não dizem nada. Vivem para fora. Estão nus.

A regra que ensina ocultar e revelar o íntimo embeleza a pessoa, porque a faz dona de si, por que a torna capaz de se mostrar aos outros de uma maneira “para dentro” e, por isso, digna. O pudor manifestado nas atitudes, roupas e palavras permite vislumbrar o que ainda fica oculto e silenciado: a própria pessoa. Por isso, o pudor está no umbral: porque é partir dele que chama ao outro, se lhe mostra o que pode atraí-lo e maravilhá-lo, o que poderia envergonhar, o que nunca se disse. O pudico não se oferece todo inteiro, mas convida a um depois, a um momento em que ocorre um desvelar, em que pode haver um diálogo de olhares e palavras dê margem a uma intimidade compartilhada. Somos pessoas com interioridade e o pudor regula necessariamente as nossas relações.

A compostura

Uma vez que o pudor e a vergonha ensinam o limite entre o decente e o indecente, podemos perguntar de que modo se dá a presença do belo na pessoa. A resposta dá título a estas páginas: compostura e elegância. Alguém já disse que o objeto da elegância é a presença do belo na figura, nos atos e movimentos, ou melhor, a manutenção ativa dessa presença, aquela obra de arrumação e compostura que faz a pessoa, não apenas digna e decente, mas bela e formosa diante de si e dos outros.

Para explicar essa ideia, proponho ao leitor uma novidade, para a qual solicito a sua aprovação. Consiste em introduzir uma distinção entre duas “elegâncias”: uma tem um sentido negativo, e quer apenas preservar do vergonhoso. É a que chamarei de compostura. A outra é a elegância “de verdade”, plena de sentido positivo, que inclusive poderia ser definida como a beleza pessoal.

A compostura é o sentido negativo da elegância, pois quer garantir a ausência de feiura na figura e conduta pessoais. Na verdade, essa atitude humana foi considerada pelos clássicos como uma virtude, para eles algo menor, que chamaram de “modéstia”. O Dicionário da Real Academia Espanhola da Língua diz que modéstia é “a qualidade do humilde, falta de vaidade; pobreza, escassez de meios”, e este é certamente o sentido atual dessa palavra na linguagem cotidiana.

() O Dicionário Caldas Aulete registra algo parecido: “Falta de vaidade em relação às próprias qualidades; despretensão; humildade; simplicidade”.
O mesmo dicionário, porém, propõe outra acepção, tomada diretamente da filosofia clássica: “Virtude que modera, tempera e regula as ações externas, mantendo o homem nos limites do seu estado de acordo com o que lhe convém”. Ninguém mais entende a modéstia assim. Isso está mais para “compostura”, e acho que é assim que deveríamos dizer, corrigindo o dicionário se preciso.

() Já o Caldas Aulete é mais “rousseauniano”: “Comedimento, moderação; sobriedade. / Adequação a padrões morais e éticos impostos pela sociedade; decência; pudor”.
Para Andrónico de Rodes, primeiro editor das obras de Aristóteles, a compostura era “a ciência do que diz o que é o bem (o decente) no movimento e nos costumes”, “a boa ordem naquilo que é conveniente a diversos negócios e circunstâncias”, “espírito de discernimento, isto é, de distinção, nas ações”. O seu mestre Aristóteles, por sua vez, dizia que a compostura (claro, chamou-a de outra forma: afabilidade) trata do que é agradável ou desagradável nas palavras e ações com relação aos homens com que se convive. Isso não é senão as boas maneiras de que tanto se fala. Tomás de Aquino, enfim, afirma que a compostura ou decoro é uma virtude que regula os movimentos externos do corpo.

Um autor de moda que escreve sobre as virtudes, o francês André Comte-Sponville, insiste em que a cortesia não é uma virtude, mas uma espécie de qualidade necessária para a convivência humana. Neste caso, parece que devemos discordar, pois a compostura engloba algo mais profundo que a simples cortesia externa, embora ambas indiquem boa educação, bons modos e palavras na vida social. Ser cortês não é apenas tratar correta e educadamente as pessoas, o que implica reconhecê-las dignas de bom trato; é mais: omitir decididamente todo o detalhe que seja incômodo ou vergonhoso, e também buscar a compostura, a finura e o donaire no dizer e no agir, de modo a que se mereça por isso a estima, o apreço e a admiração.

A compostura supõe em primeiro lugar a limpeza, ausência das sujeiras e manchas que enfeiam a pessoa. Em segundo lugar, vem pulcritude, que é um asseio cuidadoso, o cuidado com a própria presença, estar “composto” e preparada, em condição de aparecer publicamente nas mais variadas situações. Em terceiro lugar, compostura é ordem, um saber estar que não se refere apenas à disposição material de objetos e roupas, mas também mover-se do modo conveniente, no momento adequado e, sobretudo, com os gestos adequados. Isso é o decoro, algo assim como a ordem dos gestos e das palavras, sua oportunidade e mesura, sua adequação ao que querem expressar e com o destinatário: decoro é, portanto, boas maneiras.

A educação na elegância começa pelo ensino desses aspectos básicos contidos na compostura. As crianças não fazem ideia da sua importância, mas sem ela não se tornam aptos para ingressar na vida social. É um erro comum, especialmente em pessoas e épocas românticas, julgar tudo isso convenção e artifício hipócrita, quando na verdade constitui a civilização do instinto e da espontaneidade por meio do rito e do costume, algo que constitui a base de toda educação e aprendizado humanos. O “naturalismo”, em forma nudista, robinsoniana ou “hippie”, costuma acabar no vulgar, esse “teísmo” sem elegância que não é consciente de sua vulgaridade. As boas maneiras são, em palavras de Kant, aquilo que “transforma a animalidade em humanidade”.

Manter a compostura exige cuidado, tempo, arrumação enfim. Isso demanda atenção, esmero consigo mesmo e com a aparência. Se não quisermos parecer desgrenhados, devemos nos cuidar, cortar as unhas, trocar de roupa, estar atentos, evitar as manchas e os mau cheiros. Perder a compostura é uma forma de perder a dignidade: quem já não se viu no dilema de ter de escolher entre correr para tomar o ônibus ou manter-se com a roupa limpa e sem suor? A pessoa descomposta e descuidada se dispersa, carece da boa autoestima que precisa para remediar os defeitos e falhas da sua condição corpórea e temporal, que nela se introduzem irremediavelmente na forma de desgaste e bagunça. Do contrário, a pessoa composta tem um centro que reúne O disperso, uma regra que mede e ordena, um sossego nascido da posse de si.

A elegância

A compostura, contudo, limita-se a cuidar para que “não saiamos do tom”. Ainda que sem compostura a elegância seja impossível (e convém não esquecer isso), é preciso algo mais para chegarmos a ser elegantes: ser atraentes, ou ao menos parecer atraentes, desenvolver o gosto e o estilo, alcançar a distinção.

A maneira mais prática de compreender um pouco do que significa ser elegantes é analisar os requisitos ou conteúdos dessa rara qualidade que todos quiséramos ter. O aspecto mais imediato e obvio é que ser elegante significa ter bom gosto. Mas o que é o bom gosto? Antes de mais nada, como nos ensinam Baltasar Gracián e Gadamer, é uma capacidade de discernimento espiritual que nos leva não apenas a “reconhecer como bela tal ou qual coisa que é efetivamente bela, mas também a ter o olhar posto num todo com o qual tudo o que é belo se conforma”. Trata-se, portanto, da capacidade de afirmar as realidades “provadas” como “bonitas” ou “feias”. Mas só podemos dizer “isso é bonito” ou “isso é feio” se o “isso”, particular e concreto (um vestido, um penteado ou um jardim) se refere a um todo diante do qual o objeto julgado fica “iluminado” e é descoberto como “adequado” ou “inadequado”. O bom gosto é, pois, “um modo de conhecer”, um certo senso da beleza ou feiura das coisas. Não se aplica apenas à natureza ou à arte, mas a todo o âmbito dos costumes, conveniências, condutas e obras humanas, e inclusive às pessoas. Não é inato. Depende do cultivo espiritual, da educação e da sensibilidade que cada um adquiriu. As coisas de “mau gosto” não podem ser de elegantes de modo algum; estão mais para torpes e vergonhosas.

Felizmente, não existe uma regra fixa que determine que é de bom ou mau gosto. O que sabemos é que o bom gosto mantém a mesura, o ordem, até dentro da moda, que leva à excelência, sem seguir cegamente as suas exigências voláteis, mas encontrando nela uma maneira de manter o estilo pessoal.

A ideia do bom gosto nos leva à segunda nota da elegância: a distinção. O distinto se opõe ao vulgar, ao grosseiro, àquilo que já implica certo desalinho e sujeira. Distinto é aquele que sobressai, que é altivo, senhorial. A pessoa humana tende a mover-se para o alto: gosta de voar, sonhar, subir, livrar-se do peso da matéria e sentir-se etérea e espiritual, desapegada, livre enfim. A distinção situa a pessoa humana acima da vulgaridade e dentro do senhorio. No caso da elegância, a distinção provém do bom gosto, visto que este permite realizar a beleza daquilo que fazemos por compostura.

Quando a pessoa dispõe sua aparência exterior com ordem e bom gosto, está bela. E é essencial entender a presença da beleza na pessoa como uma nota decisiva da elegância. É ela que lhe dá esse ar distinto e espiritual que, por assim dizer, a desmaterializa e eleva. Claro que algumas pessoas têm uma beleza natural, física, que não precisa de cuidados para ser elegante: o seu porte, caminhar, têm já uma forma naturalmente distinta e bem proporcionada, formosa. Tais pessoas, se tiverem bom gosto e forem elegantes, podem chegar a enriquecer a sua já natural beleza até um esplendor que a outros costuma ser vedado devido à sua disposição natural inferior.

É essencial lembrar que a beleza significa em primeiro lugar harmonia e proporção das partes dentro do todo, sejam as partes do corpo, das roupas, da linguagem ou do comportamento. Além disso, como diz Aristóteles, “não se pode subtrair ou acrescentar nada às obras bem acabadas, pois tanto o excesso quanto a falta destroem a perfeição”. “A feiura – diz Tomás de Aquino comentando essa passagem – é o defeito da forma corporal, e surge quando um membro se mostra com uma forma inadequada (indecente). Pois não se consegue a beleza (a elegância) se todos os membros não estiverem bem proporcionados e adornados”. Isso quer dizer que um defeito já prejudica o conjunto, pois para haver beleza exterior da pessoa, toda a aparência deve ser inteira, acabada e bem proporcionada.

A inteireza

A inteireza é precisamente a característica daquilo que é bem feito, daquele em que nada sobra ou falta, que está completo e perfeito dentro dos seus limites. A ideia de perfeição sempre fascinou os gregos: o inteiro é perfeito porque, circunscrito e limitado, tem dentro de si o seu télos, sua finalidade, aquilo que lhe dá plenitude. A elegância envolve todo o ser da pessoa, inteira e possuidora da sua plenitude. Assim, se ser elegante significa ser inteiramente belo, não nos podemos limitar somente à aparência. É forçoso incluir tudo aquilo que a pessoa é e manifesta.

Essa é a ideia grega, hoje tão esquecida, de que as ações belas, elegantes, são aquelas que realizamos abandonando o interesse próprio em busca daquilo que é valioso em si, que tem caráter de fim, que uma vez alcançado traz felicidade e perfeição. Esses bens não são como a eloquência ou a boa aparência, arte ou a beleza corporal: são os bens autênticos, que realmente nos importam porque não nos fazem apenas felizes, mas bons. Para os clássicos o belo, pulchrum, é o bom, aquilo que convém ao homem e o aperfeiçoa. Por isso, a pessoa que vive em harmonia consigo própria, se autodomina, empreende a busca do bem mais alto e árduo, bem que constitui um ideal de vida, não é simplesmente boa, mas tem kalokagathia, uma bondade bela, ou uma beleza boa, um comportamento inteiramente sob o seu domínio: esta é a verdadeira elegância, a que deita raízes na alma e a torna mais bela porque põe nela o amor, a virtude e o saber verdadeiros.

A elegância revela assim a sua dimensão moral, algo que constitui o fundo e o substrato da outra dimensão, corporal e externa: quem não vive em harmonia com os seus sentimentos e as suas tendências, quem não sabe o que quer e não age como deve, quem vive em discórdia consigo próprio e com os outros, quem não conhece a serenidade e a mesura em seus desejos e ações, quem é indiferente à realidade que o rodeia, quem não reproduz dentro de si, na sua vontade, afetos e inteligência, a ordem geral do universo e do ser próprio, é alguém que não pode ser elegante porque não é bom, nem senhor de si. Eis a abrangência da ideia de que a elegância é a presença do belo na pessoa.

Reproduzir em si próprio a beleza geral do universo é a suprema elegância. E isso desperta nos outros entusiasmo e admiração. As atitudes humanas que levam à sua conquista são o respeito, a benevolência, o prestar a atenção ao real e ajudar cada coisa a ser tudo o que pode. O indecente, pelo contrario, é a prepotência, atropelar a realidade para submetê-la a nossos interesses, pisotear a dignidade dos outros.

A beleza humana não é apenas física, mas também moral. Só que a beleza física, também ela parte da elegância, não é algo simplesmente natural. Estaria incompleta se o vestido, o adorno e a proporção não a completassem. O cenário principal da elegância, a sua matéria por assim dizer, é o embelezamento da compostura. E esse embelezamento pode ser atingido com cumprimento da tarefa ineludível de cuidar de si mesmo: a escolha das roupas, a ornamentação corporal, as maneiras distintas, a “forma bela de expressar os pensamentos”, como diz a definição de elegância no já referido dicionário, o modo de mover-se, a forma e expressão de cada gesto, etc. A elegância está na bela composição de tudo isso. E é neles que se aprende e desenvolve.

() No Caldas Aulete: “Fineza e graça na escolha de palavras e expressões”.

Essa bela composição é o cenário em que outro componente da elegância pode aparecer: a arte e o estilo pessoais, que são a expressão exterior da própria pessoalidade e gosto. Um homem elegante tem “estilo” próprio, sabe dispor as coisas com distinção, cria a seu redor um âmbito cuidado e agradável, embelezado; ao mesmo tempo, deixa transparecer um bom gosto característico naquilo que faz. Por isso, o estilo pessoal é a singularização da aparência, o que distingue a própria figura e a faz inconfundível e de certo modo irrepetível. A “distinção” reside hoje mais neste selo pessoal que pomos na nossa imagem que no caráter aristocrático de superioridade que noutros tempos uma classe social impunha (Daniel Innerarity). A elegância converte-se então num leito por onde corre a expressão da pessoalidade e criatividade de cada um, num desafio à monotonia e à uniformidade.

Devemos acrescentar aqui uma observação que nos poderia levar muito longe: por que o ornato, o adorno, e não apenas a arrumação e a compostura? Adornar é uma necessidade e um costume humano que não corresponde à mania, ou à simples conveniência de tapar o que está nu ou vazio. Tem mais a ver com a ideia de festejar. Todo o adorno tem, com efeito, uma função dupla: é simultaneamente representante e companhia. Acompanha e ajuda a representação festiva. Um vestido de casamento pode servir de exemplo. Trata-se de um vestido extraordinário, superabundante, luxuoso até, simbólico. Opera uma transformação na noiva. E a acompanha, a reveste de uma atmosfera solene e festiva ao mesmo tempo em que significa e realiza a sua condição nupcial. Nota-se aqui como o adorno, o adereço externo, cumpre essa dupla função de acompanhar e significar aquilo que a situação pede. Ocasiões desse tipo têm exigências e conveniências que o ornato e a figura da pessoa devem refletir, preceder e acompanhar. Pois bem: a elegância preside esse “estar à altura” que acontece nas ocasiões festivas como adorno e compostura da pessoa.

Toda a imensa capacidade humana de adornar (braceletes, anéis, colares, pinturas, telas, trajes e utensílios de festa) está a serviço da representação que torna visível e presente aquilo que não é imediatamente presente: o júbilo, a dignidade, a veneração, a gratidão, a lembrança e a comemoração… A elegância encontra o seu âmbito mais pleno na festa e nas ações representativas e simbólicas que se dão nela de modo natural. Nas festas, as pessoas parecem diferentes, transformam-se, ficam belas e elegantes, põe-se à altura do acontecimento, e sua capacidade criadora tem então ocasião de brilhar e de transbordar.

E é neste ponto que surge o perigo de confundir elegância com simples aparência. É preciso ter em mente a última característica da elegância: ela só é verdadeira quando não vem acompanhada de afetação e fingimento, mas expressa-se com espontaneidade e autenticidade. Isso se chama naturalidade, mostrar-nos como somos, de modo que aquilo que aparece corresponda ao fundo e à interioridade verdadeiras. Naturalidade não é pura espontaneidade, mas também mesura, moderação, ausência de demasia, pois o excesso destrói a elegância, desconjunta as coisas e os gestos. A verdadeira beleza é sempre portadora de naturalidade. Atuar espontânea e moderadamente, com gosto e estilo pessoais que mostram na pessoa uma beleza possuída desde o interior de si mesmo: isso é ser elegante.

Em todo isso os outros são importantes. Olhar para o espelho, esse dono da nossa estima, ou sentir-nos olhados, é um apelo à nossa beleza, a ser elegantes e atraentes para merecer a estima e o reconhecimento próprio e alheio. Quem ama sua dignidade cuida da sua elegância. E assim, o cuidado da própria aparência acrescenta à pessoa o quê de beleza que a faz amável e atraente. É uma preparação para o encontro com os outros, uma busca pela nobreza humana do conviver, a criação de um âmbito que está para além da pura utilidade: a apresentação alegre e festiva da pessoa. Ser elegantes consiste em saber encontrar sempre motivos para expressar a alegria por meio do adorno.

Nada foi ainda dito sobre criação de elegância. Costuma dar-se por meio de modelos (aqui em sentido estrito) que encarnam visivelmente o cânon da beleza corporal vigente em cada momento, e o estilo que se faz moda e referência. Todo ele é socialmente necessário e hoje, como tudo, é realizado de modo profissional e empresarial. A imagem do modelo ou da modelo é muitas vezes multiplicada nos meios de telecomunicação. Mas depois, como acontece com os atores e atrizes, o modelo é instado a falar, a mostrar algo mais que um rosto ou uma roupa. Não pode virar um fetiche: deve possuir de verdade a sua própria imagem, ser além da sua aparência.

Quem adora o fetiche quererá repetir em si uma elegância mecânica e imitada, carente de respeito pelo que um homem ou uma mulher é. O importante é que a elegância não seja apenas uma imitação exterior, mas a expressão de um mundo autenticamente pessoal.

Era isso o que queria dizer, amigo leitor. Se o homem fala, não apenas com as suas palavras, mas também com a sua expressão, com o seu gesto, com a sua figura, dizer as coisas belamente não é apenas bom, mas desejável. Ao fazê-lo dignificamo-nos como pessoas e elevamos ao nível do verdadeiramente humano a comunidade de vida que temos com os outros.

Ricardo Yepes Stork

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