São José – Ernest Hello

Ensaio sobre São José que trata, numa linguagem densamente poética e fulgurante, dos principais pontos do caráter do Santo, como o silêncio e a obediência. Publicado como apêndice ao livro José, o silencioso, de Michel Gasnier, apareceu pela primeira vez no livro de Hello intitulado Physionomies de Saints (Paris, 1875).

São José, a sombra do Pai!: Aquele sobre quem se projeta a sombra do Pai, densa e profunda. São José, o homem do silêncio!: Aquele que mal é tocado pela palavra. O Evangelho só nos diz isto dele: Era um homem justo. Sempre sóbrio em palavras, o Evangelho é ainda mais sóbrio do que de costume ao falar de São José. Dir-se-ia que este homem, envolto em silêncio, inspira silêncio. O silêncio de São José produz silêncio ao redor de São José.

O silêncio é o seu louvor, o seu modo de ser, a sua atmosfera. Onde está José, reina o silêncio. Dizem alguns viajantes que, quando a águia levanta voo, o peregrino sedento adivinha a existência de uma fonte no lugar do deserto onde se projeta a sombra dessa ave; escava então a terra nesse lugar, e eis que a água brota. A águia dissera-o na sua linguagem, ou seja, voando, e dessa forma a beleza se converteu em utilidade: quem sente sede, compreendendo a linguagem da águia, busca a fonte no meio da areia e encontra água.

Haja o que houver de verdade natural nesta preciosa lenda, ela é fecunda em grandes símbolos. Quando a sombra de São José se projeta em alguma parte, o silêncio não está longe dali. Cave-se a areia, símbolo da natureza humana, e brotará a água. E a água será aquele silêncio profundo no qual todas as palavras estão contidas; aquele silêncio vivificante, refrescante, apaziguador, saciante: o silêncio substancial. Onde se projeta a sombra de São José, a substância do silêncio, insondável e pura, brota do mais profundo da natureza humana.

Não há nenhuma palavra sua registrada na Sagrada Escritura. Mardoqueu, que fizera Ester florescer à sua sombra, é um dos precursores do Santo; Abraão, pai de Isaac, representa também o pai adotivo de Jesus; e José, filho de Jacó, é a sua imagem mais expressiva. Este primeiro José foi, no Egito, o guardião do pão natural; o segundo José foi, no Egito, o guardião do Pão sobrenatural. Ambos foram os homens do mistério e foi o sonho que lhes comunicou os seus segredos, pois ambos foram instruídos em sonhos e assim adivinharam coisas ocultas. Assomados ao abismo, os olhos de um e outro viam através das trevas; viajantes noturnos, descobriram os seus caminhos através dos mistérios da sombra. O primeiro José viu o sol e a lua prostrados diante dele; o segundo José dava ordens a Maria e a Jesus: Maria e Jesus obedeciam-lhe.

Que abismo interior não devia trazer no seu íntimo o homem que se via obedecido por Jesus e por Maria, o homem que convivia familiarmente com esses mistérios e a quem o silêncio revelava as profundidades do seu segredo! Quando serrava as suas madeiras e via o Menino trabalhar sob as suas ordens, os seus sentimentos, aprofundados por essa situação inaudita, mergulhavam no silêncio que os aprofundava ainda mais. E da profundidade onde vivia com o seu trabalho, teve a fortaleza de não alardear perante os homens: “O Filho de Deus está aqui”.

O seu silêncio parece uma homenagem ao inefável: é como a abdicação da Palavra diante do Insondável e do Imenso. O Evangelho, que tão poucas palavras diz, tem os séculos por comentário; os séculos aprofundam nas suas palavras e fazem brotar da pederneira a chispa de luz viva. É que os séculos têm por missão trazer à luz os segredos. São José foi desconhecido durante muito tempo; porém, desde Santa Teresa de Ávila, especialmente encarregada de revelá-lo aos cristãos, já é muito menos ignorado.

Curiosamente, cada século tem dois aspectos – o cristão e o anticristão, opostos por um contraste direto e admirável. O século XVIII, século do riso, da frivolidade, da leviandade, do luxo, teve um São Bento José Labre. Esse mendigo chegou a alcançar a glória, até a glória humana, ao passo que os que brilharam no seu tempo caíram numa abjeção histórica incomparável, diante da qual são glórias as comuns abjeções. Não sei o que Deus terá feito com as almas de muitos que brilharam no século XVIII; mas a ciência humana, apesar da sua imperfeição e da sua lentidão, fez justiça aos seus nomes: praticamente todos os representantes do século XVIII estão enterrados num especial esquecimento. No entanto, José Labre, que é a contradição viva desse século, brilha até mesmo aos olhos dos homens; e aqueles mesmos que tentam ridicularizá-lo se vêem obrigados a considerá-lo uma personalidade histórica.

O nosso século XIX é, acima de todos, e em todos os sentidos do termo, o século da Palavra. A Palavra, boa ou má, enche a nossa atmosfera. Uma das coisas que nos caracterizam é o barulho. Nada mais barulhento do que o homem moderno: ama o barulho, gosta de produzi-lo ao redor dos outros, e gosta, sobretudo, que os outros o produzam ao seu redor. O barulho é a sua paixão, a sua vida, a sua atmosfera: a publicidade substitui nele muitas outras paixões que morrem afogadas nessa paixão dominante, a menos que vivam dela e se alimentem da sua luz para brilhar com maior violência. Este nosso século fala, chora, grita, louva-se e desespera-se: e tudo converte em exibição. Detesta a confissão secreta e explode a cada momento em confissões públicas. Vocifera, exagera, ruge.

Pois bem, foi este estrepitoso século XIX que assistiu à elevação e à exaltação da glória de São José, que acaba de ser nomeado oficialmente padroeiro da Igreja Universal [1], tornando-se mais conhecido, invocado e honrado do que em qualquer outra época! Foi por entre raios e trovões que se produziu, insensivelmente, a revelação do seu silêncio.

Até que ponto São José penetrou na intimidade de Deus? Não o sabemos. Mas, no meio do tumulto que nos rodeia, sentimo-nos invadidos pelo sentimento dessa imensa paz em que parece ter deslizado toda a sua vida: e parece que este contraste quer revelar-nos a oculta grandeza das coisas.

Muitos que nada têm a dizer falam, e sob o barulho da sua linguagem e a turbulência da sua vida dissimulam o nada das suas idéias e dos seus sentimentos. E São José, que tanto tem a dizer, não fala: guarda dentro de si as grandezas que contempla: dentro dele erguem-se montanhas sobre montanhas, e as montanhas são silenciosas.

Os homens são arrastados pelo feitiço das bagatelas. Mas São José, entre as tribulações da sua viagem ao Egito, naquela fuga de Jesus perseguido já desde o início, permanece em paz, dono da sua alma e do seu silêncio. No meio dos pensamentos, dos sentimentos, dos tumultos, dos incidentes e das dificuldades dessa viagem, o representante de Deus Pai foge, como se fosse ao mesmo tempo fraco e culpado: foge para o Egito, para o país da angústia, retorna ao lugar terrível do qual os seus antepassados tinham saído sob a proteção de Deus. Percorre na direção contrária o caminho percorrido por Moisés e, enquanto se dirige para o Egito e permanece no Egito, lembra-se de quando procurou lugar na pousada e não o encontrou.

Quia non erat locus in diversorio, porque não havia lugar para eles na pousada!

A história do mundo está nessas poucas palavras. Mas ninguém lê essa história tão lacônica, tão substancial, porque lê-la significa compreendê-la, e toda a sucessão dos séculos não é suficientemente longa para sondar tudo aquilo que está escrito nessas palavras: Não havia lugar na pousada.

Houve lugar para outros viajantes, mas para aqueles não. O que não se nega a ninguém é negado a Maria e a José: e Jesus Cristo ia nascer em poucos minutos! O Esperado das nações chamava às portas do mundo… e não houve lugar na pousada para Ele!

O Panteão romano, pousada dos ídolos, tinha lugar para trinta mil demônios com nomes supostamente divinos; e Roma não teve lugar para Jesus Cristo no seu Panteão. Parecia adivinhar que Jesus Cristo não queria semelhante lugar nem semelhante participação.

Quanto mais insignificante é uma pessoa, mais facilmente se instala. Aquele que traz em si um valor de humanidade tem mais dificuldade para instalar-se, sobretudo se trouxer em si qualquer coisa de admirável e próximo de Deus; mas quem leva o próprio Deus não encontra lugar. Todos parecem adivinhar que necessita de um lugar demasiado grande, e, por mais que Ele queira fazer-se pequeno, não consegue desarmar o instinto dos que o rechaçam, não consegue persuadi-los de que se assemelha aos outros homens; por mais que oculte a sua grandeza, ela brilha à sua revelia e, à sua proximidade, as portas fecham-se instintivamente.

Essa pequena frase, que diz apenas: Porque não havia lugar para eles na pousada, é tanto mais terrível quanto mais simples. Não é a inflexão da queixa, da censura, da recriminação: obedece ao tom natural do relato, que suprime toda a reflexão, pois o Evangelho deixa que nós mesmos façamos as nossas reflexões: Quia non erat locus in diversorio.

E o que dizer dessa palavra diversorio, que indica multiplicidade? Os viajantes comuns, os homens que fazem número, encontraram lugar na pousada. Mas Aquele que Maria trazia consigo ia nascer num estábulo, porque era Ele quem iria dizer um dia: “Uma só coisa é necessária”, unum est necessarium.

diversorio foi-lhe fechado! Seria necessário que um raio iluminasse a nossa noite e nos mostrasse todos os séculos de uma só vez, concentrados num só ponto e num só instante, para que essa frase tão curta, tão pequena, tão simples, nos surgisse tal como é: para que nos surgisse tal como é essa pousada na qual Maria e José não encontraram lugar. Seria necessário um raio que iluminasse esse abismo. Mas, que aconteceria se os nossos olhos se abrissem?

Faber pergunta-se que pensariam as mães dos Inocentes que pouco tempo depois foram degolados. Pergunta-se mesmo se não meditariam sobre o homem e a mulher que não haviam encontrado lugar, e sobre o Menino que não tivera senão uma manjedoura para nascer. Pois a terra inteira também lhe negaria em breve um lugar para morrer: ao fim de alguns anos, iria cravá-lo no alto de uma cruz.

A terra foi como a pousada: inospitaleira.

São José cumpre na realidade o que os outros cumpriram em figura. Depois de ter guardado o Pão da vida no Egito, realizando aquilo do qual o primeiro José fora a sombra, retorna a Nazaré e faz o mesmo que Josué fizera.

Josué havia detido o curso do sol. Aquele que era a Luz do mundo abandona Maria e José para ir a Jerusalém defender a causa de seu Pai; mas Maria e José vão encontrá-lo ali e fazem-no retornar a casa. Cristo, o Sol, que parecia ter iniciado o seu curso, fica detido durante dezoito anos. Dos doze aos trinta anos, Jesus não sai da sua casa.

Com que idade morreu José? Não se sabe; mas parece que já tinha morrido quando Jesus abandonou a sua casa. E naquela casa, o que se terá passado? Que mistérios se terão desvelado aos olhos desse homem a quem Jesus obedecia? O que veria José nos atos de Jesus Cristo, nesses atos que, pela sua própria simplicidade, devem ter assumido aos seus olhos dimensões incomensuráveis? O que não veria no menor dos seus movimentos? O que não veria na sua atividade aparentemente tão limitada? O que não veria na sua obediência? Como terá soado no fundo da sua alma esta frase: “Eu mando e Ele obedece: eu ocupo o lugar de Deus Pai”?

E, por trás dessa frase, debaixo dela, no fundo, devia existir algo mais profundo que ela mesma: o silêncio que a envolvia; e a frase que teria dado forma ao silêncio talvez não tenha chegado a formular-se nunca. Talvez estivesse oculta no silêncio que a continha.

Quando as palavras humanas se reúnem, depois de terem sido sucessivamente chamadas pelo homem e de se terem declarado, uma após outra, impotentes para expressar o fundo da sua alma, então o homem cai de joelhos e do fundo do seu abismo ergue-se o silêncio. E esse silêncio que sai do fundo do abismo ultrapassa as nuvens e sobe até o trono daquele que tomou as trevas por retiro: sobe ao trono de Deus com os perfumes da noite.

Esse grande silêncio da natureza que se chama sonho foi o templo onde os dois Josés ouviram as vozes do céu. O primeiro José foi vendido por causa de um sonho que excitou a inveja e o ódio dos seus irmãos. Por um sonho foi levado para o Egito, e também em sonhos recebeu São José a ordem de fugir para o Egito.

A seguir, mandou, e a Mãe e o Menino obedeceram. Parece-me que essa autoridade inspirou a São José idéias prodigiosas. Parece-me que o nome de Jesus devia conter para ele segredos admiráveis. Parece-me que, quando nele mandava, a humildade do Menino assumia dimensões gigantescas que os sentimentos conhecidos não podiam medir. Essa humildade devia reunir-se ao silêncio do Patriarca, no seu lugar, no seu abismo. E esse silêncio e essa humildade deviam enaltecer-se mutuamente.

São José escapa à nossa apreciação, que não pode medir a altura das suas funções. Deus, tão ciumento, confiou-lhe a Santíssima Virgem. Deus, tão ciumento, confiou-lhe Jesus Cristo. E a sombra do Pai caía todos os dias sobre ele, tão densa que as palavras mal se atreviam a aproximar-se dela.


[1] São José foi declarado padroeiro da Igreja Universal em 1847 pelo Papa Pio IX (N. do E.)

Fonte: José, o silencioso. Editora Quadrante, São Paulo, 1995. Págs. 159-165.

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