Questões de Bioética – 1 – O Embrião Humano

Por Jaime Espinosa

A maior parte dos debates atuais no campo da bioética gira em torno de uma pergunta: “Quando começa a vida humana?”. O primeiro artigo da série Questões de Bioética mostra, com base em pesquisas científicas, que a vida humana começa concepção e que, portanto, o embrião tem todos os direitos de uma pessoa já nascida.


1. O EMBRIÃO É UM SER VIVO?

Desde há algum tempo, os cientistas da área biológica vêm mudando de opinião a respeito da natureza dos vírus: são seres vivos, os mais elementares de todos, ou apenas uma substância química inanimada? Pertencem à Biologia ou à Bioquímica? Depois de vários avanços e recuos em prol da sua condição vital, a tendência atual é colocá-los numa faixa intermediária entre os seres vivos e os seres inanimados [1].

Em sua simplicidade minúscula, o vírus consta apenas de um ácido nucléico (DNA ou RNA) coberto por uma espécie de invólucro de natureza protéica.

Figura 1. Estrutura de um vírus animal

Uma bactéria já é extremamente mais complexa do que um vírus. Os biólogos concordam em que uma bactéria tem vida, sem dúvida alguma. Veja o que escreve um deles: “Uma bactéria, entretanto, tem vida. Embora seja uma célula única, pode gerar energia e as moléculas necessárias para se sustentar e se reproduzir” [2].

Figura 2. Célula procariótica de bactéria

As células de um organismo, seja ele sapo, macaco ou homem, também têm vida. Na realidade, as células de um organismo podem encontrar-se em três situações diferentes: elas podem estar vivas, hibernando – como que adormecidas (por exemplo, células musculares com deficiência de irrigação sangüínea) – ou mortas.

Comparadas com os vírus, as células de um organismo têm uma complexidade estrutural e funcional consideravelmente maior, com o seu núcleo contendo os cromossomos, cada um dos quais é uma molécula de DNA por assim dizer “empacotada”, e portadora de inúmeras informações codificadas. Lá está o citoplasma, separado do núcleo por uma membrana, em que ficam importantes “fábricas”: as mitocôndrias, que geram energia a partir do combustível chamado glicose, os ribossomos, onde se encontra uma verdadeira linha de montagem de proteínas a partir da junção de aminoácidos em cima de uma matriz chamada RNA mensageiro (uma transcrição do DNA que está no núcleo da célula). A célula contém ainda outras estruturas encarregadas de realizar operações específicas, como podemos ver na figura 3. Mas isto é o bastante para perceber a enorme complexidade estrutural e funcional de uma simples célula viva de um organismo, seja ela uma célula nervosa, da pele ou um gameta (óvulo, espermatozóide).

Figura 3. Célula humana indiferenciada

E agora surge a pergunta crucial: Será que um embrião, nas primeiras fases do seu desenvolvimento (zigoto, mórula, blastocisto…) é algo parecido com um vírus ou com um simples coágulo de sangue, como pensam algumas pessoas mais simples, ou então, pelo contrário, é um ser vivo, e um ser de uma complexidade muito maior do que uma simples célula? Se sabemos que as células de um organismo vivo têm a riqueza estrutural e funcional sucintamente descrita acima, o que será um embrião, resultado da união dos gametas masculino e feminino? É sabido que logo depois da penetração do espermatozoide no óvulo (na realidade um oócito), a célula-ovo ou zigoto daí resultante começa a ter uma atividade impressionante: um grande crescimento através de uma rápida multiplicação celular, e uma evolução morfológica considerável, passando pelas fases antes citadas e por outras posteriores, bem complexas. Assim, por exemplo, mesmo o zigoto já produz enzimas humanas [3]

Figura 4. Fecundação e nidação

Se os próprios gametas, por serem células muito mais complexas do que uma simples bactéria, já são elementos vivos, quanto mais o será o resultado da união de ambos, dotado de uma atividade e crescimento intensos!

Devemos, pois, concluir que o embrião, nas primeiras fases do seu desenvolvimento está dotado de vida, de uma complexa atividade vital e de um grande vigor, como veremos no capítulo seguinte.

2. ATIVIDADE VITAL DO EMBRIÃO

Visando diferentes finalidades, o embrião tem sido apresentado, nas primeiras fases do seu desenvolvimento, como um simples amontoado de células, uma espécie de “verruga” instalada no útero da progenitora, sem muita identidade e com pouca autonomia.

A motivação que levou à formulação de tal concepção do embrião é múltipla. Para as pessoas adeptas do aborto e que procuram convencer-se a si mesmas e a outras da sua licitude, essa concepção pretende tranqüilizar a consciência, pois expulsar um amontoado de células seria uma ação eticamente irrelevante, como a de quem extirpa uma verruga.

As pessoas favoráveis à experimentação com embriões humanos nas primeiras fases do seu desenvolvimento procuram rebaixar o embrião à condição de “pré-embrião”, uma espécie de “Zé Ninguém”, algo como um conglomerado celular que ainda não atingiu o status de ser humano, razão pela qual poderia ser tratado como uma cobaia com absoluta tranqüilidade de consciência.

Não cabe aqui fazer uma enumeração exaustiva de todos os motivos que levam a desprezar o embrião humano nos primeiros dias da sua existência; bastam estes exemplos para compreender que há muita gente interessada em rebaixar a categoria ontológica do embrião para poder fazer o que bem entende com ele, sem ter de dar satisfação a ninguém, muito menos à própria consciência.

A realidade que nos mostra a Embriologia – ciência que estuda o desenvolvimento dos seres vivos nas primeiras fases da sua existência – é um pouco diferente do que a de um simples amontoado informe de células.

Como é sabido, a fase embrionária inicia-se no momento da fertilização, quando os gametas masculino e feminino se unem para dar lugar ao zigoto ou ovo, “um organismo unicelular que dará origem a um novo indivíduo” [4].

O embrião, desde o início, já está dotado de um genoma (patrimônio hereditário) pessoal, que imprime ao seu crescimento um vigor impressionante, comandando, através da ativação e desativação de diferentes genes, o desenvolvimento tanto quantitativo como qualitativo de todas e cada uma das partes do organismo.

Essa atividade é dirigida pelo próprio genoma, e não pelo corpo da mãe. Leva a cabo a diferenciação das diferentes células do corpo, a sua situação no espaço, o momento do seu aparecimento no tempo, a forma que devem adotar os diferentes órgãos, a coordenação harmoniosa das inúmeras reações bioquímicas desse organismo em formação, o momento em que determinadas células devem suicidar-se (apoptose) – por exemplo, para que desapareça a membrana que une os dedos do embrião até uma certa idade –, e assim por diante.

Como vemos, é uma atividade ingente, coordenada com precisão milimétrica, e realizada com tal vitalidade que um indivíduo adulto animado por ela seria um “super-homem”.

E essa atividade começa com todo o seu vigor e complexidade a partir do momento da fecundação, pois a célula-ovo começa a dividir-se “após 15-20 horas, o que é uma clara prova de que o zigoto opera desde o momento da fusão dos gametas como uma «unidade» intrinsecamente orientada e ligada a uma evolução bem definida” [5]. Depois continua dividindo-se à razão de uma divisão a cada 10-12 horas, com um crescimento geométrico (2-4-8-16-32-64-128 … células).

Por volta do 6º dia após a fertilização, no estágio de blástula ou blastocisto, o embrião se fixa no útero da mãe através do trofoblasto que, a maneira das raízes da falsa seringueira, penetra na parede uterina para “beber” o sangue materno com grande avidez. Origina-se assim um órgão complexo de nutrição, formado por tecido embrionário e tecido materno, chamado placenta [6].

Fig. 5. Embrião

Identificar este leão voraz com uma “verruga”, um “coágulo de sangue” ou um “simples amontoado inerte de células” é desconhecer profundamente a realidade. Dizer que este ser tão ativo e vigoroso não é um ser vivo é o cúmulo da desinformação. Como acabamos de ver, o embrião, desde o momento da fecundação, é um ser bem vivo e com um vigor invejável, é um ser de grande complexidade genética, bioquímica, histológica e morfogenética. É só não molestá-lo que ele se desenvolverá até transformar-se num robusto recém-nascido e, mais tarde, quem sabe, num grande homem. Não esqueçamos que todos nós passamos por essas primeiras fases e estamos aqui, e não gostaríamos que naquela data nos tivessem confundido com uma “verruga”, e menos ainda que alguém tentasse despejar-nos de um abrigo tão aconchegante como é o útero materno.

3. A IDENTIDADE DO EMBRIÃO

Um jornal da capital paulista noticiava no dia 24.04.05: “Seda brasileira vira quimono no Japão. O melhor fio de seda é produzido no interior de São Paulo, mas corre risco de extinção” [7]. Esta notícia lembrou-me daqueles anos em que não havia televisão, Internet e os outros divertimentos eletrônicos que polarizam os interesses de muitos meninos e adolescentes dos nossos dias; não era raro encontrar então quem mostrasse grande interesse pela criação do “bicho-da-seda” (Bombyx mori). Este bicho tem, entre outros atrativos, o de apresentar uma variedade impressionante de formas ao longo do seu desenvolvimento.

De fato, ocorre neles aquilo que os zoólogos chamam de metamorfose completa: o ovo dá lugar a uma larva que vai crescendo à medida que ingere as folhas de amoreira que, solícitos, os criadores lhes oferecem: cresce até atingir o tamanho máximo de uma bela lagarta. Nesse momento começa a tecer o casulo, dentro do qual a lagarta transforma-se numa pupa (ou crisálida). Depois de umas 3 semanas, a crisálida transforma-se numa mariposa, que sai voando do casulo. O sexo da mariposa não é difícil de reconhecer, pois entre o macho e a fêmea existem diferenças morfológicas apreciáveis.

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Fig. 6. Metamorfose do bicho-da-seda

Se um menino eletrônico de hoje, durante qualquer uma dessas etapas – ovo, larva, lagarta, crisálida ou mariposa –, perguntasse a um criador do Bombyx mori o que era aquilo, obteria uma resposta imediata: “É um bicho-da-seda!”

Não existe nas outras espécies animais uma variedade tão nítida de etapas evolutivas. Na espécie humana, pouco depois da fertilização do óvulo (oócito), o ovo ou zigoto sofre várias divisões celulares, dando lugar a numerosas células embrionárias – os blastômeros – que, depois de poucos dias, iniciam a diferenciação. Depois de trinta dias, já se distinguem a cabeça, os olhos, os brotos dos membros (braços e pernas), a protuberância do coração; com cinqüenta dias, o embrião já se parece bastante com uma criança recém nascida, apenas com uma cabeça desproporcionadamente grande para o corpo. É o que se chama em zoologia desenvolvimento direto. Pela descrição anterior, é fácil deduzir que o Homo sapiens sapiens – nós – pertencemos a esse grupo do desenvolvimento direto, cujos indivíduos não passam por etapas morfológicas tão diferentes como aquelas que atravessa o bicho-da-seda [8].

Mesmo assim, há pessoas que teimam em fazer uma distinção ontológica entre as primeiras fases do desenvolvimento embrionário (zigoto, mórula e blastocisto) – a que chamam de pré-embrião – e o embrião depois dessas fases, achando que só este último é humano. Seria o caso de perguntar-lhes em que espécie colocam o pré-embrião. Será da espécie caprina, bovina ou suína? Um exame genético do pré-embrião mostra, já a partir do zigoto, que biologicamente pertence a espécie humana e não a uma espécie extraterrestre imaginária.

A distinção entre pré-embrião e embrião apóia-se em pequenas diferenças, muitíssimo menores que aquelas encontradas no bicho-da-seda e em outras espécies que sofrem metamorfose completa, e que são totalmente insuficientes para estabelecer uma identidade biológica e filosófica diferente entre um e outro.

Uma prova de que a base científica dessa distinção é artificial é a discordância notável entre os autores quanto ao sinal que marcaria a fronteira entre o pré-embrião e o embrião. Nesse ponto, cada “cabeça é uma sentença”.

Uns acham que só pode ser considerado humano a partir do momento da implantação no corpo do útero, o que ocorre por volta do sexto dia depois da fecundação, quando o trofoblasto do embrião mergulha no revestimento interno do útero (endométrio), ricamente abastecido de sangue materno, para oferecer ao concepto oxigênio e nutrientes.

Outros estabelecem a fronteira por volta do décimo quarto dia, quando o embrião está firmemente implantado no útero e já não pode originar gêmeos univitelinos (idênticos), pois as suas células não são mais totipotentes (capazes de originar um organismo completo), nem é possível que ocorra o fenômeno conhecido com o nome de hibridação, que consiste na fusão de dois embriões para dar lugar a um único organismo.

Outros autores só o consideram humano a partir do início da terceira semana de gestação, momento em que aparece a placa neural, estrutura de que surgirá o sistema nervoso do novo ser. Já um quarto grupo defende a idéia de que só seria humano quando o sistema nervoso começasse a funcionar, estabelecendo uma coordenação específica dentro do novo organismo. E não faltam aqueles que só conferem ao concepto a condição de humano a partir do momento do seu nascimento.

Por fim, há ainda aqueles que só conferem ao indivíduo o título de pessoa humana quando é capaz de raciocinar. Com esta condição, tão exigente, teríamos que negar este título a muitos adultos “cabeça-de-vento” que andam por aí fazendo estripulias.

Quando numa questão há muitas opiniões, via de regra é porque nenhuma delas é convincente. Poderíamos perguntar-nos, pois: por que esta e não aquela seria a opinião certa? Ninguém sabe dar uma razão decisiva.

O certo é que, do ponto de vista biológico, o zigoto já tem um patrimônio hereditário (genoma) bem “personalizado”, diferente do genoma do pai e da mãe, e mesmo de qualquer outro ser humano do planeta terra. Sendo isto tão claro, por que esse empenho em não outorgar-lhe a condição de ser humano, muito antes do marco estabelecido arbitrariamente por certos autores na evolução dos indivíduos da espécie humana? Por que, de repente aparecem novidades que não se encontravam nos excelentes livros de anatomia e de embriologia que estudamos nas faculdades de medicina na segunda metade do século vinte?

São novidades que aparecem concomitantemente com certas manipulações e agressões ao embrião humano:

1. Atacá-lo com a “pílula do dia seguinte”, impedindo a sua nidação no corpo do útero ou matando o embrião nas primeiras fases do seu desenvolvimento.

2. Agressão com o RU-486, produto à base de um anti-hormônio que substitui a progesterona (hormônio que sustenta a gestação), o que leva o embrião à morte antes ou depois da sua implantação no útero. É uma agressão contra o embrião nas primeiras semanas da sua existência, pois o RU-486 é usado nas primeiras oito semanas de gestação.

3. Existem, ainda, as agressões aos embriões excedentes da chamada reprodução assistida (fecundação in vitro com transferência para o útero de alguns embriões assim produzidos). Alguns deles – os menos perfeitos – são jogados diretamente na lata do lixo, e os excedentes mais perfeitos são congelados para tentativas ulteriores.

Estes últimos, ou outros fabricados ad hoc, podem ser ainda esquartejados para permitir a extração do seu embrioblasto (parte do blastocisto que originará todas as células do embrião; é o embrião propriamente dito) e formar linhagens de células-tronco embrionárias para um dia tentar usá-las em terapias de regeneração de tecidos que não se regeneram por si, como o encefálico e o cardíaco.

Figura 6. Formação do blastocisto

Nos tratados de deontologia (ética) médica [9], sempre foram condenadas as experiências in anima nobile (no ser humano) visando o desenvolvimento da ciência, especialmente aquelas experiências que implicam risco para a vida ou para a saúde da pessoa, e sobretudo quando as “cobaias humanas” não vão beneficiar-se dessas experiências (o contrário, isto é, quando o paciente pode beneficiar-se com a experiência, é lícito, como seria experimentar um novo remédio num doente com esperança de curá-lo). Pior ainda quando não se trata de risco, mas de certeza de morte do embrião esquartejado para ser usado em benefício de outrem: um paciente concreto atual ou um possível paciente futuro indeterminado.

Pretende-se fazer com embriões humanos aquilo que deveria ser feito, até esgotar todas as possibilidades – vencendo as dificuldades inerentes a toda pesquisa –, com embriões de camundongo, gato, etc.

Não é de estranhar que haja coincidência entre o desejo de muitos setores da pesquisa biológica de usar embriões humanos como cobaias baratas, por um lado, e, por outro, as distinções entre pré-embrião (que não seria um organismo vivo, que não seria um ser humano, etc.) e embrião (que seria uma pessoa humana, sujeito de direitos, etc.), para poder usar e abusar do embrião humano à vontade.

A realidade é que, nos estudos do desenvolvimento embrionário, uma das características apontadas pelos embriologistas é a perfeita continuidade desse desenvolvimento, sem solução de continuidade. Em todo o processo evolutivo o embrião conserva a sua identidade e a sua individualidade. Ele é uma unidade individual que se comporta como uma totalidade em constante e autônoma organização até a formação de um organismo humano completo.

É possível que alguma vez nos tenhamos perguntado: “Quando é que eu comecei a existir?” Por outro lado, todos temos consciência de que um elemento importante da nossa existência é o nosso corpo, que talvez já tenhamos apalpado alguma vez depois de um acidente para ver se ainda estávamos vivos. Podemos pensar, pois, que começamos a existir quando começamos a ter um corpo, fosse lá qual fosse o seu tamanho, a sua beleza e a sua forma. A Biologia pode dar-nos uma resposta convincente a essa pergunta: o nosso corpo existe desde o momento em que se formou o zigoto, com características genéticas individuais bem precisas, diferentes de qualquer outra pessoa humana e, mais ainda, de qualquer outro ser vivo.

Com os dados que nos fornece a Biologia, podemos afirmar que, do ponto de vista filosófico, o embrião humano não é pura potencialidade, mas uma realidade em ato, uma substância viva e individualizada, cujo princípio de desenvolvimento reside no interior dessa mesma substância. Sim, o embrião está em potência de tornar-se criança, menino, etc., assim como um jovem está em potência de tornar-se um idoso, mas já é, em ato, um ser humano, apenas mais jovem. O mesmo acontece com o embrião.

4. O EMBRIÃO CONGELADO

Certamente mais de um ser humano já caiu na fenda de uma geleira ou glaciar, morrendo congelado. São acidentes indesejáveis que devem ser evitados, usando as precauções necessárias: ir em grupos, amarrados uns aos outros com cordas, para que, se um cair, os outros consigam puxá-lo, etc. Entretanto, acidentes desse tipo mostraram que o cadáver congelado se conserva bem, evitando que a decomposição cadavérica destrua todos os tecidos e órgãos do indivíduo. Isso levou a pesquisas no sentido de conseguir manter com vida organismos congelados, surgindo o congelamento propositado.

Sim, há casos em que as pessoas são congeladas de propósito. É o adulto que não se conforma com o próximo desfecho letal de uma doença hoje incurável e pede para ser congelado até que apareça um tratamento eficaz para aquela enfermidade. Pode ser que esse truque para driblar a morte por mais alguns anos funcione, mas é bem pouco provável que depois de dez ou quinze anos no gelo a pessoa possa acordar lépida a ponto de agüentar bem um tratamento que pode ser bastante agressivo, parecido com a quimioterapia, radioterapia ou algo análogo. O mais provável é que o congelamento, durante tanto tempo, tenha efeitos nocivos num organismo que já estava bastante debilitado por uma doença de prognóstico fatal.

Outro caso de congelamento provocado, mas agora sem o consentimento do interessado, é o dos embriões guardados a baixíssima temperatura em recipientes adequados. Parece que o número destes infelizes passa de um milhão.

Uma pessoa menos avisada poderia perguntar: “Mas, como é que eles surgem, e em tão grande quantidade?” A fonte primordial é a técnica mais usada de reprodução assistida, i.e., a fecundação artificial in vitro com transferência de embriões, cuja sigla, em inglês, é FIVET.

A pessoa menos avisada poderia perguntar ainda: “E o que vem a ser isso? Como se processa?”

É um método que visa, com ajuda da técnica médica, permitir a um casal que não pode ter filhos de forma natural tê-los de maneira artificial. Para isso, através de um tratamento hormonal se consegue que os ovários da mulher produzam por volta de sete a dez óvulos. Estes são extraídos por sucção através de uma sonda especial, e são misturados com os espermatozóides do marido numa lâmina de vidro, onde ocorre a fertilização desses óvulos, razão pela qual se chama fecundação in vitro, no vidro.

Desta maneira, formam-se vários embriões; os dois ou quatro mais perfeitos são introduzidos no útero da mulher, previamente preparado para aninhá-los. Os embriões que apresentam sérias imperfeições são jogados na lata do lixo; se sobram alguns com boa aparência, são congelados para possíveis novas tentativas, pois é freqüente que não se obtenha êxito na primeira vez.

Eis como surgem os embriões congelados, cada dia mais numerosos em muitos países, inclusive o Brasil. Quando a primeira tentativa tem êxito, o casal é notificado para que compareça na clínica de reprodução assistida para assumir a responsabilidade pelos embriões congelados, mas praticamente ninguém aparece, pois não sabem que destino dar àqueles embriões, já que qualquer decisão é dolorosa para quem tem consciência de que aqueles embriões são seus filhos, tanto quanto aquele que vingou no útero materno.

É possível que alguns casais não compareçam na clínica por comodismo: resolvido o seu problema – gerar um filho -, “têm muitas outras coisas importantes com que se preocupar…”

Por estas ou por outras razões, o fato é que os embriões excedentes vão ficando no congelador de nitrogênio líquido, sem que se saiba o que fazer com eles, pois é difícil encontrar um destino decente para estes seres humanos, um destino compatível com a dignidade inerente ao Homo sapiens sapiens.

Esta é realmente uma questão bem complicada: o que fazer com os embriões congelados?

Algumas pessoas apontam a solução da adoção pré-natal, por parte de casais que não conseguem ter filhos. No útero da esposa, adequadamente preparado com hormônios, seriam colocados dois ou três desses embriões, com a esperança de que pelo menos algum deles consiga vingar e possa ser levado até o seu desenvolvimento completo no útero dessa mãe adotiva.

Uma das dificuldades desta solução é que ela é para poucos dos muitos embriões congelados, por várias razões: Não são todos os casais sem filhos que estão dispostos a passar por esta experiência, nada confortável para a mulher e nada barata para o bolso do casal. É um procedimento que não está isento de riscos para a saúde da mulher. Por outro lado, quando o casal é bem informado, fica sabendo que a fertilização in vitro, o congelamento, e o próprio descongelamento, não são totalmente inócuos para o embrião, e que este pode nascer com problemas difíceis de constatar antes da adoção. É bem possível que bastantes casais, sabendo disto, não estejam dispostos a correr o risco de passar por uma série de procedimentos desagradáveis para a mulher, e nada baratos, para obter um filho adotivo problemático, com um problema difícil de avaliar previamente. É bem mais seguro adotar uma criança já nascida, mesmo quando são usados, na adoção pré-natal, embriões em boas condições, que é o procedimento comum. Talvez, de 100 mil embriões congelados, só estejam em boas condições pouco mais de 10 mil.

Pode traçar-se um paralelo entre a baixa taxa de êxito com o uso de óvulos (ovócitos) congelados. “De 1.087 ovócitos que foram descongelados, sobreviveram 760 (69,9%), dos quais 687 foram fecundados por injeção intracitoplasmática de um só espermatozóide. Obtiveram-se 368 embriões normais (53,5%). Transferiram-se [para o útero] 331 [embriões] e tornaram a ser congelados os 37 restantes. Dos 331 transferidos conseguiram implantar-se adequadamente 145 [embriões]. Finalmente obtiveram-se 18 gravidezes (12,4%), das quais 12 chegaram a termo, nascendo no total 13 crianças sadias. No primeiro semestre, ocorreram 6 abortos (33%). Resumindo, de 1.087 óvulos descongelados se conseguiram apenas 13 crianças nascidas vivas (1,11%), o que é realmente catastrófico (*).

[*] Human Reprocdution, 21;370, 2006, in Aceprensa 3-6-V-06, Panorama, p. 8.

Por outro lado, o aspecto ético desta solução não é totalmente tranqüilo. No momento em que são aproveitados apenas os embriões tipo I e rejeitados aqueles que são catalogados como II, III e IV, não deixa de haver uma clara discriminação dentro de uma população de seres humanos.

A adoção pré-natal pode ser ocasião para que mais de uma clínica do ramo se dedique a ganhar dinheiro fabricando in vitro, de propósito, embriões tipo I, provenientes de “eminentes” doadores de gametas, para casais sem filhos que optassem por este sistema de adoção.

Outra solução proposta – materialmente possível, mas moralmente intolerável – é a que apontam algumas pessoas que raciocinam da seguinte forma: dado que o congelamento pode ser considerado um meio extraordinário para manter vivos esses embriões, e dado que o uso de meios extraordinários para manter a vida não é moralmente obrigatório, esses embriões sem destino poderiam ser retirados do congelador para morrerem “em paz”, procurando proporcionar-lhes o batismo quando ainda vivos, para garantir-lhes um bom destino eterno, já que foi tão lamentável a sua sorte terrena, por causa do egoísmo dos homens. Esta solução também não é aceitável do ponto de vista ético, porquanto retirar os embriões do congelador nessas condições equivale a provocar diretamente a sua morte, ou seja, assassiná-los.

Nenhuma dessas ou de outras soluções possíveis no estado atual do progresso científico é satisfatória do ponto de vista da bioética. É difícil consertar um mal tão grave como o de congelar embriões fabricados in vitro, indefesos e sem direito a decidir a sua sorte. É preciso esperar que com o tempo possa aparecer uma solução melhor para eles, mais condizente com a dignidade do ser humano e que possa constituir algum tipo de desagravo ou compensação para aqueles que foram tão maltratados pelo seu semelhante com o consentimento de seus pais.

O que sim parece claro é que os embriões já congelados devem ser transferidos para o útero da sua mãe, que se submeteu voluntariamente ao processo de reprodução assistida. Ela tem obrigação moral de aceitá-los, pois é a responsável, juntamente com o marido, pela sua existência e pela sua desdita.

João Paulo II, em discurso pronunciado num congresso sobre a sua encíclica Evangelium Vitae, “O Evangelho da vida”, mostra claramente a dificuldade de encontrar soluções isentas de inconvenientes morais para os embriões congelados. Eis as suas palavras: “Faço um apelo à consciência dos responsáveis do mundo científico e, de modo particular, aos médicos, para que se detenha a produção de embriões humanos, levando em consideração que não se vislumbra uma solução moralmente lícita para o destino humano de milhares e milhares de embriões «congelados», que são e continuam sempre sendo titulares de direitos essenciais, e que é preciso tutelar juridicamente como pessoas humanas” (24-V-1996).

O que não oferece nenhuma dúvida quanto à sua absoluta discordância com a lei moral é a falsa solução de usar esses seres humanos como cobaias, fazendo com eles todo tipo de experiência científicas, muitas delas bem cruentas, ou então desmanchar esses embriões para extrair deles células-tronco. Qualquer um desses destinos só aumentaria o agravo à sua dignidade e a desdita daqueles que já tinham sido tão maltratados até esse momento. Um pouco de misericórdia, por favor!

5. OS DIREITOS DO EMBRIÃO

As técnicas de reprodução assistida (FIVET), a experimentação com embriões e fetos humanos, a obtenção de células-tronco embrionárias desmanchando o embrião, o diagnóstico pré-natal com seus riscos para a saúde e mesmo a vida do embrião, assim como certas terapias intra-uterinas, colocam o problema da proteção do embrião humano por parte da doutrina jurídica e de leis justas.

Hoje que se fala tanto em direitos humanos, direitos das minorias, proteção do meio ambiente, preocupação com a extinção do mico-leão e até do grande tubarão branco, parece que o embrião teria pelo menos o direito de clamar: “esqueceram de mim!” Sim, em não poucos países esqueceram-se dele. Esqueceram que o embrião tem direitos humanos de igualdade e de não-discriminação, exigidos com tanta veemência pelos grupos de pressão minoritários e protegidos por leis rigorosas e com grande zelo quando os seus reivindicadores podem gritar, organizar passeatas de protesto, assumir atitudes agressivas, influir na votação para eleger legisladores…, coisas que o indefeso embrião não pode fazer, razão pela qual acaba sendo esmagado pela lei do mais forte.

Isso não é um exagero, pois enquanto há pessoas preocupadas com as baleias encalhadas no litoral, e vão lá para ajudá-las a desencalhar, e choram se não o conseguem, a realidade é que são bem poucos os que choram pelos vários milhões de embriões trucidados todos os anos através de truculentos métodos abortivos.

É boa a preocupação com os animais e as plantas, mas convenhamos que o ser humano, seja qual for o momento da sua trajetória evolutiva, exige de todos nós uma maior consideração, pois foi criado à imagem e semelhança de Deus, acima das demais criaturas deste mundo, e dotado de uma alma espiritual e de um destino eterno.

Portanto, se a ciência biológica e a filosofia realista nos dizem que o embrião é um ser humano, com a dignidade própria da pessoa humana, a conclusão lógica é que ele deve ser protegido pelas leis de qualquer país civilizado. Devem, pois, aplicar-se ao embrião, desde o momento da fecundação, a mesma proteção que as leis outorgam às crianças, aos meninos, etc., isto é, o direito de nascer, o direito à vida, à saúde. A legislação deve proibir qualquer ação que prejudique a saúde do concepto. Deve garantir que essa vida não seja instrumentalizada para um fim alheio ao embrião, como seria a investigação científica para proporcionar células ou tecidos em benefício de terceiros e com prejuízo dele, etc. Portanto, são totalmente condenadas, por uma Bioética coerente e sadia, as leis que permitem o aborto do embrião ou do feto, mesmo que só seja em determinadas circunstâncias (estupro, saúde da mãe, etc.).

Se a maior parte das pessoas é contra a pena de morte, até daqueles que cometeram os crimes mais hediondos que possamos imaginar, como pode haver leis que admitam a morte de seres inocentes e inermes, que não fizeram mal a ninguém?

Mesmo no caso hipotético de o legislador ter motivos para duvidar de que o embrião é uma pessoa humana, ele não poderia, em sã consciência, permitir a sua eliminação, pois é obrigado a optar pela solução mais segura, já que constitui um princípio do direito o aforismo in dubio pro reo, isto é, na dúvida é preciso favorecer o réu, a pessoa julgada ou sobre a qual se legisla, para evitar a injustiça com relação à mesma. De fato, a ética bem entendida exige não apenas que se evite um ato certamente injusto, mas também um ato provavelmente injusto. Legislar ou realizar qualquer outra ação com dúvidas a respeito da sua licitude já é um ato moralmente ilícito. Assim, eliminar um embrião quando se tem dúvidas a respeito da sua condição de pessoa humana supõe correr o risco de suprimir um ser humano, o que constitui uma desordem moral. Esta desordem pode entender-se bem se consideramos o caso de um caçador que, na hora de disparar a arma, tem a dúvida de se aquilo que se mexe atrás de uma moita é uma capivara ou o João, seu colega de caçada. Se não quer perder tempo para verificar e dispara assim mesmo, matando o João, será réu, no mínimo, de um homicídio culposo por imprudência.

A este respeito é bem claro o que se expõe na Instrução Donum vitae da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé: “O Magistério […] afirma de maneira constante a condenação moral de qualquer aborto provocado […]. O fruto da geração humana, portanto, desde o primeiro momento da sua existência, isto é, a partir da constituição do zigoto, exige o respeito incondicional que é moralmente devido ao ser humano na sua totalidade corporal e espiritual. O ser humano deve ser respeitado e tratado como pessoa desde a sua concepção e, por isso, desde aquele mesmo momento devem ser-lhe reconhecidos os direitos da pessoa, entre os quais, antes de tudo, o direito inviolável de cada ser humano inocente à vida” (I, 1).

A Lei Natural e o Direito Natural estabelecem que o direito à vida, que toda pessoa inocente tem, é um direito que não pode ser violado em nenhum caso. Por outro lado, constitui o objeto do quinto Mandamento da Lei de Deus que diz: “Não matarás”.

É algo que está recolhido na legislação de todos os povos civilizados. Muitas vezes, entretanto, as leis humanas não obedecem à Lei Natural nem à Lei Divino-Positiva, manifestada explicitamente por Deus através da Revelação. É o caso das legislações humanas que permitem o aborto do embrião ou feto por qualquer motivo fútil alegado pela mulher ou pelo casal.

Existem também aquelas legislações humanas que, embora proíbam o aborto e o penalizem severamente, abrem exceções em relação a certos casos. É o que acontece na legislação penal brasileira que não penaliza o aborto praticado por médico no caso em que a gravidez seja produto de um estupro ou se realize o aborto para salvar a vida da mãe. Falaremos mais amplamente deste tema em outra ocasião, mas vale a pena assinalar aqui a incongruência existente entre a legislação penal, que libera o aborto nos casos antes mencionados, e a legislação civil, que garante os direitos civis do nascituro, pois o primeiro direito do feto que a lei deve preservar é o direito de viver, sem o qual nenhum outro direito poderá ser usufruído.

Um exímio jurista afirma que essa permissão do aborto em certos casos “macula o artigo 5º da Lei Suprema, que considera inviolável o direito à vida. Fere o § 2º do mesmo artigo, que oferta aos tratados internacionais que cuidam de direitos humanos a condição de cláusula imodificável da Constituição. Viola o artigo 4º do Pacto de São José, tratado internacional sobre direitos fundamentais a que o Brasil aderiu, e que declara que a vida começa na concepção” [10].

Por outro lado, o embrião humano tem o direito de nascer numa família normalmente constituída, onde possa encontrar um ambiente apropriado para o desenvolvimento normal e favorável da sua personalidade, constituído por pais responsáveis e irmãos verdadeiros.

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REFERÊNCIAS:

[1] Villarreal, Luis P., “Ameaça fantasma”, in Scientific American, jan. 2005, pág. 61.
[2] Idem, pág. 63.
[3] Kipman, Elisabeth Cerqueira, “CTE: É lícito usá-las visando o benefício de outras pessoas?”, in Zenit, 03/05/05, pág. 1.
[4] Fitz Gerald, M.J.T., Embriologia humana, Harper & Row do Brasil, São Paulo, 1980, pág. 1.
[5] Serra, Angelo, “Das novas fronteiras da Biologia e da Medicina…”, in Questões atuais da Bioética, Ed. Loyola, São Paulo, 1990, pág. 107.
[6] Ibidem.
[7] O Estado de São Paulo, 24.04.05, caderno B1.
[8] Fernandes, Valdir, Zoologia, EPU, São Paulo, 1981, págs. 15-18 (Tipos de desenvolvimento do embrião).
[9] cfr. Flamínio Fávero, Tratado de Medicina Legal, vol. III; Francisco Peiró, Deontologia Médica, Livraria Cruz, Braga (Portugal), etc.
[10] Martins, Ives Gandra da Silva, “O Supremo e o homicídio uterino”, Jornal do Brasil, 15.07.04.

Jaime Espinosa
Formado em Medicina pela Faculdade de Medicina de Saragoça e Doutor em Direito Canônico pela Universidade de São Tomás de Aquino, em Roma. Lecionou Medicina Legal na Faculdade de Medicina de Sorocaba e foi professor de Psicopatologia Aplicada à Educação e Biologia Educacional no Centro de Educação da PUC, em São Paulo.