Maquiavel: a nova “moral” do poder

Por Peter Kreeft

Diplomata de origem humilde, Maquiavel viveu em Florença, numa época de insegurança social e violentas lutas políticas. Suas receitas para conservar o poder e a ordem incluíam o sacrifício, por “razões de Estado”, dos pontos mais fundamentais da Ética e da Moral. Infelizmente, essas receitas têm sido seguidas à risca até hoje por uma multidão de políticos e empresários.


Niccolò Machiavelli (1496-1527) foi o fundador da moderna filosofia política e social; raramente houve na História das idéias uma revolução tão completa como a promovida por ele. E o pensador não ignorava quão radical era: comparou o seu trabalho ao de Colombo, pois também teria descoberto um novo mundo, e ao de Moisés, pois também lideraria um “novo povo escolhido”, ansioso por libertar-se da escravidão às idéias morais, rumo à “terra prometida” do poder e do êxito prático.

Para todos os pensadores sociais anteriores, a meta da vida política era a virtude: uma sociedade boa era aquela em que as pessoas fossem boas. Não havia “dois pesos e duas medidas” para a bondade, um no âmbito da vida individual, outro no da vida social. Isso, até Maquiavel: a partir dele, a Política deixou de ser a arte do bem viver em sociedade para tornar-se “a arte do possível”. E, neste ponto, a sua influência foi enorme: todos os principais filósofos políticos e sociais que vieram depois (Hobbes, Locke, Rousseau, Stuart Mill, Kant, Hegel, Marx, Nietzsche, Dewey) começaram por saudar a nova bandeira hasteada pelo florentino, passando a rejeitar o ideal da virtude e a rebaixar o padrão da moralidade.

Maquiavel argumentava que as morais tradicionais seriam como as estrelas: belas, mas distantes demais para poderem iluminar o nosso caminho sobre a terra. Precisaríamos de lanternas feitas pelo homem, ou seja, de metas que estivessem ao nosso alcance. Deveríamos guiar-nos pelas coisas da terra, não pelas do céu; por aquilo que os homens efetivamente fazem, não pelo que deveriam fazer.

A essência da sua revolução foi julgar os ideais de acordo com a prática, ao invés de julgar a prática de acordo com os ideais. Um ideal somente seria bom se for prático para mim. Por isso, Maquiavel merece ser considerado o pai do pragmatismo. Segundo o seu modo de pensar, não somente “os fins justificam os meios” (quaisquer meios que funcionem), mas “os meios justificam os fins”, no sentido de que só valeria a pena buscar um fim se dispuséssemos dos meios práticos para atingi-lo. Em outras palavras, o novo summum bonum, o novo bem supremo, seria o sucesso. (Às vezes, o pensador italiano parece falar não apenas como o pai do pragmatismo, mas como o primeiro pragmatista americano…).

Com essas afirmações, Maquiavel na verdade não rebaixou o nível dos padrões morais; simplesmente suprimiu-os. Mais ainda do que um pragmatista, pode-se dizer que era um antimoralista. Segundo ele, a moral só teria a ver com o sucesso por dificultá-lo. Em conseqüência, dizia que um príncipe tinha de “aprender a não ser bom” (O Príncipe, cap. 15), a quebrar as promessas feitas, a mentir, a trapacear e a roubar (cfr. cap. 18) para ser bem-sucedido.

Por causa dessas opiniões, aliás expressas sem subterfúgios, alguns dos contemporâneos consideraram O Príncipe um livro literalmente inspirado pelo demônio (1). Muitos professores modernos, porém, vêem-no como obra científica. Defendem o seu autor afirmando que não queria abolir a moralidade, mas simplesmente escrever um livro sobre outro assunto: sobre como as coisas são, não sobre como deveriam ser. Costumam até elogiá-lo pela sua falta de hipocrisia, o que implicitamente equivale a dizer que moral é hipocrisia.


(1) Costuma-se dizer que o apelido que o demônio recebe na Inglaterra, Old Nick, derivaria do primeiro nome de Maquiavel, Nicolau (N. do T.).

Essa é uma confusão moderna freqüente: tomar por hipocrisia o fato de não se praticar o que se prega. Nesse sentido, porém, todos, absolutamente todos os homens serão hipócritas enquanto não pararem de dar qualquer tipo de conselho. Matthew Arnold definiu a hipocrisia como “o tributo pago pelo vício à virtude”; ora, Maquiavel foi o primeiro que se recusou a pagar até esse tributo mínimo. Superou a hipocrisia, não elevando a prática ao nível das recomendações, mas reduzindo as recomendações ao nível da prática: modificando os ideais conforme realidade, e não a realidade conforme os ideais.

Tal como a letra de certa música da cantora Madonna, o “sermão” de Maquiavel consistia em dizer: “Papai, não me venha com sermões!” (“Poppa, don´t preach!”). Você consegue imaginar Moisés dizendo isso a Deus no Monte Sinai? Ou Nossa Senhora dizendo-o ao Anjo Gabriel? Ou Cristo dizendo isso ao Pai no Horto das Oliveiras, ao invés de: Pai, não se faça a minha vontade, e sim a tua (cfr. Lc 22, 40)? Se o conseguir, estará imaginando o inferno, pois toda a nossa esperança de alcançar o Céu está baseada em que eles disseram a Deus: “Papai, venha-me com sermões!”

Hoje definimos mal a hipocrisia. Hipocrisia não é não conseguir agir de acordo com o que se prega: é deixar de acreditar no que se prega, sem deixar de pregar e fingindo que se vive de acordo com isso. Pode-se dizer, assim, que a hipocrisia no fundo é uma “propaganda enganosa”. Em conseqüência, Maquiavel praticamente foi o inventor da hipocrisia, porque praticamente foi o inventor desse tipo de propaganda. Ao menos, foi o primeiro filósofo que pretendeu convencer o mundo inteiro só à base de propaganda.

O florentino encarava a sua vida como uma batalha espiritual contra a Igreja e a “propaganda” da Igreja. Estava convencido de que todas as religiões não passariam de uma “campanha de propaganda” cuja influência terminaria ao cabo de um período entre 1.666 e 3.000 anos. Pensava que o Cristianismo terminaria muito antes do fim do mundo, provavelmente por volta do ano 1.666, destruído ou pelas invasões dos bárbaros do Leste (os turcos e a atual Rússia), ou pela fraqueza e apatia no próprio seio do Ocidente cristão, ou por ambas as coisas.

Maquiavel tinha – e tem – como aliados todos os cristãos indiferentes que prezavam mais a pátria terrena do que a celestial, que preferiam César a Cristo e o sucesso social à virtude. Era a eles que dirigia a sua mensagem, a sua propaganda. O pensador não podia expor ingenuamente os seus verdadeiros objetivos, porque seriam desprezados, e confessar o seu ateísmo lhe seria fatal; por isso, foi muito cuidadoso em evitar toda a heresia explícita. Mas a sua “heresia prática” (2) consistia na destruição da “fraude católica” mediante uma agressiva propaganda secularista. (Alguma pessoa mais exaltada talvez chegasse mesmo a afirmar que nele está fundado todo o atual poderio da mídia…).


(2) Em sentido estrito, não há heresias práticas, mas pecados. Há heresia, porém, no pressuposto tácito de Maquiavel que é impossível viver a santidade recomendada por Deus – porque a graça eleva a natureza humana –, ou no de que Deus não intervém no mundo por Ele criado (N. do T.).

O florentino percebeu que são dois os instrumentos necessários para controlar a conduta dos homens e os rumos da História: a pena a espada, a propaganda e as armas. Assim tanto os corpos como as mentes podem ser dominados, e dominar era o que ele queria. Considerava que toda a vida humana e toda a História eram determinadas por dois componentes: a virtú (a força) e a fortuna (a sorte). A fórmula do sucesso seria simplesmente maximizar a virtú e minimizar os efeitos da má fortuna. Maquiavel conclui o seu O Príncipe com essa chocante imagem: “A Fortuna é uma mulher e, se a quisermos submissa, será preciso bater nela e sujeitá-la à força” (cap. 25). Em outras palavras, o segredo do sucesso seria uma espécie de estupro (3).


(3) Quem busca o sucesso ao invés da perfeição, isto é, da plena realização da natureza humana por meio do conhecimento da verdade e do amor a Deus e aos outros (o que é o mesmo que dizer da bondade moral), efetivamente comete violência contra a sua natureza e os seus anseios mais profundos (N. do T.).

Para conseguir o controle, as armas são tão necessárias quanto a propaganda: Maquiavel é uma águia no campo da “sabedoria” prática, e tem consciência disso. Dizia: “Não poderás ter boas leis sem boas armas, e onde houver boas armas, as boas leis seguir-se-ão necessariamente” (cap. 12). Em outras palavras, e parafraseando Mao Tsé-Tung: a justiça “surge do cano de uma arma”. O nosso pensador afirmava que “todos os profetas armados venceram, e todos os profetas desarmados fracassaram” (cap. 6). Moisés portanto, deve ter usado armas, mas a Bíblia teria omitido os relatos sobre isso. Jesus, o supremo Profeta desarmado, deve ter falhado: afinal, foi crucificado e, segundo alguns, não ressuscitou. Mas a sua mensagem conquistou o mundo por meio da propaganda, por meio das armas intelectuais. Foi exatamente esse tipo de guerra que o florentino decidiu empreender.

Também é fruto dessa filosofia o relativismo social, pois o renascentista não reconhecia nenhuma lei acima das promulgadas pelas diversas sociedades; e como tais leis têm a sua origem na força e não na moralidade, a conseqüência é que a moralidade baseia-se… na imoralidade. O argumento, hoje em dia, expõe-se mais ou menos assim: a moralidade só pode vir da sociedade, uma vez que Deus não existe e, em conseqüência, também não pode haver uma moral natural universal por Ele outorgada. Mas toda a sociedade origina-se de alguma revolução ou violência: a sociedade romana, origem da Lei Romana, originou-se com o assassinato de Remo pelo seu irmão Rômulo. A História humana inteira começa com o assassinato de Abel por Caim. Portanto, o fundamento da lei é a ilegalidade, e o fundamento da moralidade é a imoralidade.

A força do argumento reside na sua primeira premissa, que no caso do pensador florentino equivale a um autêntico ateísmo implícito (igual, aliás, ao de todos os relativismos sociológicos, incluído aquele que hoje domina as mentes dos leitores e dos escritores de quase todos os livros-texto de Sociologia).

Maquiavel usou um argumento parecido para criticar os ideais de caridade, clássicos e cristãos: como é que você obteve os bens que agora está dando ao próximo? Pela competição egoísta. Todos os bens são dados ao próximo à custa de terceiros. Se a minha fatia de bolo é assim tão grande, a do outro tem de ser bem menor. O altruísmo, portanto, depende do egoísmo.

Esse raciocínio pressupõe um materialismo de fundo, pois os bens espirituais não diminuem quando são compartilhados ou dados a outrem, nem a sua aquisição implica que alguém tenha sido lesado. Quanto mais dinheiro eu tiver, menos você terá, e quanto mais dinheiro eu doar, menos restará para mim (4). Mas o amor, a verdade, a amizade e a sabedoria, ao serem compartilhados, crescem em vez de diminuir: coisa que o materialismo simplesmente não enxerga e com a qual, aliás, nem se preocupa.


(4) Este raciocínio não é verdadeiro nem mesmo no plano econômico, material, pois pressupõe uma economia totalmente estagnada; numa economia que cresce – ou seja, em que há mais trabalho humano investido e com maior produtividade –, a abundância de bens e de dinheiro disponíveis para todos é também crescente. O que não significa, evidentemente, que na prática não haja sempre distorções e injustiças (N. do T.).

Maquiavel acreditava que todos somos intrinsecamente egoístas. Para ele, não existe nada semelhante a uma consciência ou um instinto moral. Daí que a única maneira de fazer com que os homens se comportem “moralmente” seja mediante o uso da força: uma força verdadeiramente totalitária, capaz de fazer com que as pessoas atuem de maneira contrária à sua natureza. A origem dos totalitarismos modernos também remonta, pois, a ele.

Se o homem é intrinsecamente egoísta, somente o medo – e não o amor – será capaz de movê-lo. Daí que o nosso pensador escreva: “É muito melhor ser temido que amado…, pois os homens têm menos escrúpulo em ofender alguém que se faça amar do que alguém que se faça temer, uma vez que a amizade representa uma obrigação, um vínculo que, por serem os homens maus, é quebrado sempre que lhes convém; já o temor é alimentado pelo receio do castigo, que nunca é esquecido” (cap. 17).

O mais estranho dessa filosofia tão brutal é o fato de ela ter se apoderado das mentes modernas, de uma forma diluída ou, pelo menos, encoberta nos seus aspectos mais sombrios. Os sucessores de Maquiavel que citamos acima suavizaram os seus ataques à moralidade e à religião, mas não retornaram à idéia de um Deus pessoal ou de uma moral objetiva e absoluta como fundamento da sociedade.

O reducionismo de Maquiavel tem sido considerado por muitos como uma libertação. Mas o que ele fez foi simplesmente implodir todo o edifício da vida humana: nada de Deus, mas somente o homem; nada de alma, somente o corpo; nada de espírito, somente a matéria; nada de dever, mas apenas o ser. Mesmo assim (e graças à propaganda), esse edifício em ruínas é mostrado como se fosse uma nova Torre de Babel. É um cárcere mostrado como se fosse a libertação da “opressora” moralidade tradicional: algo como uma permissão para afrouxar o cinto.

Satanás não é um conto de fadas: é um brilhante estrategista, e perfeitamente real. A linha de argumentação de Maquiavel é uma das mais bem-sucedidas mentiras do diabo até os dias de hoje. Sempre que nos tenta, usa essa mentira para fazer com que o mal pareça um bem desejável, que a sua escravidão pareça liberdade, e que a “gloriosa liberdade dos filhos de Deus” pareça uma escravidão. Aquele que é “o pai da mentira” adora contar-nos, mais do que pequenas mentiras, a Grande Mentira que vira a verdade ao avesso. E continuará a fazer isso impunemente enquanto não desmascararmos os seus ajudantes.

Fonte: Site do autor

Tradução: Cristian Clemente

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