A Ética e a Teoria da Evolução

Neste texto denso, cheio de originalidade e de perspicácia, Leonardo Polo descreve como os assuntos éticos estão indissoluvelmente unidos a todos e a cada um dos aspectos da vida humana. Para compreender o alcance e a radicalidade da Ética, nada melhor do que um exame detalhado das relações entre os seus temas e a biologia evolutiva do Homo Sapiens.

ÉTICA E LEGALIDADES HUMANAS

A Ética não é um patrimônio exclusivo do Ocidente: aparece em todas as grandes culturas, porque os problemas humanos que aborda são universais e sua solução também está baseada numa inspiração global. É por isso que – apesar das eventuais discrepâncias entre as formulações aplicáveis ou de detalhe – há um fundo comum, mais ou menos desenvolvido. Os grandes princípios reitores da conduta são compartilhados por toda a Humanidade e formulados em todos os âmbitos sociais, embora a Ética seja, como ramo da Filosofia, uma invenção grega. Mais concretamente, o primeiro sistematizador da Ética é Aristóteles.

Contudo, assistimos hoje ao que podemos chamar de uma certa decomposição da Ética, ou pelo menos a uma falta de aplicação dela. Certamente há obscurecimentos na consciência moral de grandes grupos humanos, mas o que sobretudo falta é a integração da Ética na vida. Isto se deve em grande parte ao descobrimento de um outro tipo de legalidades: de um modo especial, as leis científicas, com as quais foi possível empreender o grande progresso técnico que caracterizou os últimos séculos. Tudo isso faz com que haja uma pluralidade de normas, de pautas de conduta que competem entre si, de modo que a Ética é às vezes postergada em favor de outras regularidades da vida social. Pense-se por exemplo nas chamadas leis econômicas (a Economia como ciência é um descobrimento tipicamente moderno, que começa com Adam Smith): mesmo que não sejam tantas nem tão estáveis como pretendem certos economistas que não refletiram o bastante sobre os fundamentos da ciência que cultivam, é a essas leis que se recorre à hora de corrigir as disfunções da dinâmica social.

Na vida humana intervêm outras regularidades descobertas no século XX. A Biologia, por exemplo, adquiriu status de ciência ao estabelecer uma série de leis – mais ou menos bem conhecidas – impulsionadas pela noção de código genético, que é sem dúvida a idéia que norteia toda a pesquisa biológica contemporânea.

A legalidade econômica certamente afeta o Homem, mas não de modo exclusivo: afetam-no também os recentes avanços da Biologia que mencionávamos antes, cujo caráter prático torna-se cada dia mais acentuado. O que se costuma chamar de Engenharia Genética é uma tecnologia que pode ter uma influência muito intensa na vida humana. Pense-se por exemplo na fecundação in vitro e nas suas implicações morais. E isso é só uma parte do que é possível fazer.

Tudo isso faz com que às vezes a Ética refugie-se em formulações rotineiras e adote uma atitude defensiva, como se ela fosse um mero resíduo ou um fator apenas parcial na condução da vida humana: seja porque o Homem está submetido a outras regras mais decisivas, como as que regem o comércio de produtos, bens e serviços, ou então porque se acaba notando que a maneira de ser dos indivíduos obedece à sua carga genética. Com outras palavras, aparece o perigo de que a Ética transforme-se em moralina (como afirma Nietzsche, na sua Genealogia da Moral), ou seja: numa série de regras extrínsecas – que se podem interpretar como reflexos de intenções mais profundas e ocultas – ou num conjunto de remédios sumários e suspeitos, carentes de qualquer justificação intrínseca.

Convém evitar sobretudo que a Ética se isole das demais regras sociais ou biológicas, pois nesse caso não se entende nem o que é a Ética nem o que essas outras regras são. O Homem é um ser complexo e unitário, aberto para fora e a partir de dentro, que num momento mergulha na sua intimidade e noutro transcende-se, e que nesse ir e vir se forma: se forja. Nada há nele que possa ser considerado neutro do ponto de vista ético, porque nenhuma regra anônima – simplesmente racionalizada – é capaz de explicar esse seu co-existir: uma co-existência que integra o externo no interno, que outorga o interior ao exterior, e de acordo com a qual tudo aquilo que é humano, como digo, se forja.

Costuma-se dizer que negócio é negócio. E deve-se responder que negócio não é negócio: negócio só é negócio se é ético. Porque se não, não é negócio: é mau negócio. Isso porque não existe uma autonomia da atividade econômica: aceitar tal autonomia é alienar o ser humano, é arrancar das suas raízes tanto o negociar como o negociante. Ético é precisamente tudo aquilo que tem a ver com a radicalidade da ação humana. A Ética não é um cataplasma, não é moralina: sem a Ética, as outras legalidades dissolvem o ser humano. Conferir tal independência a essas regularidades nada mais é do que uma mera aplicação incoerente de um uso secundário da liberdade.

Não se deve dizer que o Homem esteja dominado por leis. O que sim se pode dizer é que a ação do Homem faz com que surjam certas legalidades que se dão precisamente em virtude dessa ação. A Ética é o estudo da ação no decurso do desenvolvimento do ser humano como ser vivo, espiritual e corpóreo. Quaisquer outras legalidades estão vinculadas às legalidades constitutivas do ser humano: não estão separadas da moral. Essas outras legalidades têm de ser assumidas pela consideração ética, e abrirem-se a partir dela.

A ÉTICA E AS OUTRAS CIÊNCIAS

Se formulamos o assunto dessa maneira, se enfocamos a Ética como dimensão intrínseca do ser humano dinamicamente considerado, evita-se então a consideração superficial ou parcial dos temas éticos: essa espécie de oscilação entre o que é ético e o que não tem nada a ver com a Ética. O que precisamos é de um estudo da Ética que dê razão do agir humano, que mostre-nos como surgem aquelas legalidades – regularidades – que têm a ver com o que há de mais elementar e profundo do ser humano, com a sua ascensão pelos degraus do ser. A Ética é a ciência antropológica que sempre deve ser levada em conta: uma ciência da qual nunca podemos prescindir e que nunca deve ser deixada em suspenso. A Ética é uma ciência sem a qual o homem torna-se ininteligível: desumaniza-se.

As ciências positivas que se ocupam da atividade humana (Sociologia, Economia, etc.) sempre a tratam de modo parcial. A única ciência que realmente estuda a ação humana por inteiro, levando em conta os aspectos decisivos e sem estabelecer postulados – embora deixe implícitas algumas dimensões humanas, que ainda assim podem aparecer depois, completando o que se averiguou, quando se pensa um pouco mais – é a Ética. Os pensadores que se ocupam de temas éticos, porém, nem sempre têm em conta todas as dimensões da ação humana: mas nesse caso incorrem em reducionismos, tal como costuma acontecer nas outras disciplinas. Contudo, se um desses estudiosos se concentrar na averiguação dos fatores esquecidos, perceberá que eles se encaixam de forma coerente no conjunto geral da Ética. Não se pode dizer o mesmo das outras ciências humanas, que só podem existir se ignorarem alguns fatores pertinentes: tais ciências estão numa situação de penúria explicativa, e portanto subordinam-se à Ética.

A Ética é a mais ajustada consideração científica da atividade humana. É na Ética – mais do que na Psicologia, na Sociologia, na Economia ou na Biologia – onde melhor se vê qual é a verdadeira índole do dinamismo humano, da conduta humana. Insisto: não digo que a Ética considere tudo, que seja uma Antropologia completa, mas sim que a sua abordagem é coerente com uma Antropologia completa. Isso porque leva em conta – ainda que às vezes de modo indireto – os fatores radicais: entre eles a liberdade, que é a dimensão mais importante e mais característica do ser humano. Embora não estude a liberdade a fundo – não existe uma teoria ética da liberdade a tal ponto rigorosa que consiga esgotar todos os seus significados –, a Ética está diretamente ligada à liberdade humana. Se prescindisse da liberdade humana, a Ética seria impossível ou estaria mal formulada. Isso de fato ocorre em certas propostas, que por isso mesmo são insuficientes.

Para expor as relações entre a Ética e as outras ciências que se ocupam do mundo humano, devemos partir da própria Ética, ou seja, estudar a Ética simplesmente como Ética. Devemos mostrar o que acabo de dizer: que a Ética não é algo acrescentado a um dado dinamismo humano, depois de ele ter sido já suficientemente constituído por outros fatores. Não tem cabimento pretender uma abordagem rigorosa do dinamismo humano sem atender àquilo que lhe é intrínseco. Por isso o estudo da ação humana deverá ser capaz de detectar o que nela há de ético desde o seu nascimento até a sua consumação. As outras ciências progridem na medida em que o seu caráter subalterno lhes permita o uso de métodos cada vez mais flexíveis e amplos na exploração de seus respectivos temas.

Para começar, é conveniente mostrar a Ética in statu nascente, isto é, mostrá-la como algo que surge com o ser humano e do ser humano. Essa é a abordagem filosófica mais rigorosa. Se expusermos a Ética seguindo os manuais, ou como um corpo de doutrina já suficientemente constituído, será mais difícil evitar ver a Ética como algo que vem ao Homem desde fora, deixando assim de notar o quanto ela é intrínseca ao ser humano, desde a sua base biológica até o que há de mais alto nele, até o espiritual.

A ÉTICA E A TEORIA DA EVOLUÇÃO

Por isso é oportuno estudar as relações entre a Ética e a interpretação do ser humano do ponto de vista da Teoria da Evolução. Assim, fundamentaremos aquilo que temos dito: que não há leis constitutivas do ser humano que sejam independentes da Ética, porque todas elas estão impregnadas de um tonalidade moral, devendo ser assumidas e compreendidas pela Ética, que é quem deve pronunciar-se a respeito delas. Se não for assim, a evolução do ser humano a partir das outras espécies é incompreensível. Afinal, trata-se de um problema prático, e não meramente teórico: o Homem não pode desenvolver a sua peculiar biologia à margem da Ética.

Isso talvez pareça uma alusão a um assunto que em princípio não é ético: uma mistura ou confusão de questões que não têm absolutamente nada a ver entre si. Mas não é assim. Sendo a nossa obrigação descobrir o que há de ético no próprio miolo da constituição humana, e uma vez que o que está de moda quando se trata da constituição do ser humano é recorrer à Teoria da Evolução, então não há mais remédio a não ser enfocar a Ética a partir ponto de vista: procurar chegar à Ética e a uma compreensão daquilo que há de ético no Homem também a partir da idéia da Evolução. Admitindo que todos nós temos uma consciência ética – o que aliás é reconhecido pela Filosofia tradicional, que dá o nome de sindérese a esse primeiro princípio cognoscitivo controlador da ação humana – e que o conhecimento da realidade ajuda a formá-la, então ocuparmo-nos desses temas biológicos não é nenhuma divagação, muito pelo contrário.

É claro que também poderíamos expor a Ética repetindo a formulação clássica dos seus temas; mas, repito, embora por essa via talvez pudéssemos chegar a reconhecer a importância de diversos conteúdos éticos, não teríamos ainda notado que a Ética impregna tudo o que existe no Homem e todas as ações humanas. Não há nada no Homem que não tenha a ver com a Ética. Não há nada no Homem que seja impermeável, isolado ou autônomo perante a Ética.

DO INÍCIO DA VIDA ATÉ O HOMO SAPIENS

Comecemos, pois, com uma breve exposição da Teoria da Evolução; digo Teoria porque a noção está bastante elaborada, apesar dos vários problemas que ainda persistem. A Teoria da Evolução está a meio fazer: há alguns problemas decorrentes das suas próprias teses que permanecem sem solução, como a seguir veremos. De qualquer forma, tratarei de destacar suas propostas mais certeiras, de acordo com a sua atual formulação.

O primeiro que convém dizer é que a aparição da vida na Terra (o único planeta onde sabemos que existe vida) é muito antiga: a vida surge há cerca de 3,6 bilhões de anos atrás. Tenha-se em conta que a idade do Universo, segundo a teoria do Big-Bang, é de cerca de 15 bilhões de anos. A Terra formou-se há aproximadamente 4,5 bilhões de anos (talvez essas datações tenham que ser revistas e corrigidas para baixo, mas isso não parece ser muito significativo). O sistema solar inteiro originou-se da explosão de uma supernova: essa parece ser a única explicação física possível para a complexidade dos átomos que existem nos planetas.

As primeiras células com núcleo datam de algo em torno de 1 bilhão e 500 milhões de anos atrás. Os mamíferos surgiram há aproximadamente 200 milhões de anos; os primatas, há cerca de 50 milhões; os pongídeos – animais da família dos chimpanzés, que têm uma configuração genética muito parecida com a nossa –, há mais ou menos 30 milhões de anos.

Dentro do que já poderíamos chamar de processo de hominização, surgem inicialmente os dois ou três ramos de Australopithecus, que datam de cerca de 4 milhões de anos atrás; depois desse antecedente aparecem três espécies claramente distintas, que os paleontólogos denominam da seguinte maneira: a primeira é o Homo Habilis, surgido há 2,5 milhões de anos e extinto um milhão de anos depois. O Homo Habilis é também chamado Pithecantropus, mas é preferível a denominação Homo Habilis, por ser indicativa da espécie. Uma espécie posterior é o Homo Erectus: apareceu há cerca de um milhão e seiscentos mil anos, e extinguiu-se há 200.000 anos. A terceira espécie é o Homo Sapiens, que apareceu aproximadamente há 170.000 anos: nessa rubrica estão incluídos o Neanderthalensis e o homem de Cro-Magnon (a espécie humana atual denomina-se Homo Sapiens sapiens). Estudos recentes – os resultados foram publicados em 1989 – sobre as mitocôndrias das células humanas do sexo feminino chegaram até mesmo à conclusão, verdadeiramente surpreendente, de que existiu Eva, isto é, de que todas as mulheres descendem de uma única mulher que viveu há pelo menos 170.000 anos.

Assim sendo, em termos globais é possível afirmar que a Natureza gastou muito tempo para chegar ao homem atual: desde o surgimento das primeiras formas de vida até nós foram mais de 3 bilhões e meio de anos.

Habilis, Erectus e Sapiens são três espécies diferentes que constituem o gênero Homo, e por isso é interessante estudá-las. O Australopithecus, antecessor de todas elas, não é considerado como pertencente ao gênero Homo. Mais adiante veremos o que significa espécie do ponto de vista evolutivo, e também apontaremos algumas das muitas e importantes razões pelas quais faz sentido agrupar aquelas três num mesmo gênero.

Para poder explicar o Homo Sapiens, é necessário distinguir como que dois processos: duas perguntas acerca de como aparecem os caracteres que lhe são peculiares. Um é o processo de hominização e o outro, o processo de humanização. São duas coisas diferentes. A hominização é o processo segundo o qual aparecem os caracteres corporais do homem, e que se dá através de três espécies, pelo menos; já a humanização é a explicação daquelas características que são exclusivas da nossa espécie: características de tipo psíquico e cultural. É evidente que existem aspectos do ser humano que não são meramente corpóreos, embora estejam muito vinculados ao corpo.

Dá-se o nome de hominização ao processo de formação do tipo morfológico humano: a sucessão de fenômenos que dá lugar à corporeidade do Homem que conhecemos atualmente. É óbvio que o nosso corpo difere muito do dos outros seres vivos. Por sua vez, dá-se o nome de humanização à explicação de uma série de características do Homem atual que são também óbvias, mas que não são corpóreas; em última análise, trata-se da aparição da inteligência: como e em qual espécie surge a inteligência.

Pois bem, o processo de hominização tem a ver com as três espécies citadas. Mas esse processo evolutivo é sumamente peculiar. Se conseguimos notar o que ele tem de tão peculiar, começaremos a entender uma diferença entre o homem e as outras classes de animais que é extraordinariamente significativa. Isso começa a aparecer já no nível corpóreo: no processo de formação do tipo morfológico humano.

COMO SURGEM NOVAS ESPÉCIES

Antes de mais nada devemos esclarecer o que significa espécie. Para um biólogo, espécie significa simplesmente a impossibilidade de cruzamento genético entre de indivíduos de um certo grupo com os de outro. Espécie é um grupo de seres viventes que é interfértil, interfecundo: quando isso não ocorre, é porque há dentro do grupo espécies diferentes. Esse é o único critério biológico possível para distinguir as espécies. A Teoria da Evolução é a Teoria da Especificação, isto é, uma tentativa de explicar a aparição das espécies, entendendo por espécie simplesmente um grupo de indivíduos interfecundos entre si e não interfecundos com indivíduos de outros grupos. Insisto: a Teoria da Evolução nada mais é do que essa tentativa de explicar o surgimento de novas espécies. No caso da hominização falamos em três espécies porque o Habilis, o Erectus e o Sapiens não são interfecundos, mesmo nos pouquíssimos períodos e locais em que poderiam ter coexistido.

Segundo os biólogos, a aparição de uma nova espécie pode dar-se de duas maneiras, ou melhor, através de dois mecanismos diferentes. Um deles é o que chamam de isolamento geográfico. Sabe-se no entanto que o isolamento geográfico não é o único modo ou processo de especiação (formação de espécies). Farei uma referência a ele para mostrar que o processo de hominização não ocorre dessa maneira.

A Teoria da Evolução hoje em dia já não é mais uma teoria unívoca ou uniforme: já se sabe que a evolução não se deu sempre do mesmo modo, e que há diversos tipos de processos de especificação ou especiação. O isolamento geográfico está mais ligado às primeiras hipóteses que se fizeram sobre o assunto, mas mesmo assim exige uma certa retificação das teses de Darwin. O outro grupo de hipóteses quanto aos mecanismos da evolução é o que diz respeito à genética. Numa dessas hipóteses, fala-se de especiação instantânea ou simpática, que tem a ver com um fenômeno já comprovado: mesmo que certos indivíduos tenham uma carga genética parecida, se essa carga está organizada ou disposta de modo diferente (essa organização se faz pelos cromossomos), então não há interfecundidade. A nossa carga genética, por exemplo, é quase exatamente igual à do chimpanzé, mas os nossos cromossomos são diferentes dos cromossomos do chimpanzé. Como se pode ver, a variação da carga genética não é a única explicação possível para o surgimento de uma nova espécie. Não basta apelar a uma semelhança maior ou menor de certos caracteres: do que se trata é de explicar a aparição de grupos interfecundos. O único critério científico para a especiação é esse: se os indivíduos do grupo são interfecundos, então são da mesma espécie; se não são mais interfecundos, então surgiu uma nova espécie.

O isolamento geográfico pode dar lugar a que indivíduos outrora interfecundos, mas que depois passaram a viver em nichos ecológicos diferentes, se adaptem cada um ao seu novo ambiente e sofram mutações que os tornem estéreis entre si. Então se diz que houve especiação: indivíduos que procedem de indivíduos interfecundos deixam de ser interfecundos conforme as adaptações a distintos nichos ecológicos.

Diferentes populações, inicialmente pertencentes à mesma espécie, se forem mantidas separadas por barreiras geográficas, já não terão como permutar as mutações genéticas ocorridas durante a sua adaptação aos seus respectivos ambientes. Se isso ocorrer durante bastante tempo, indivíduos pertencentes a cada uma dessas populações já não são mais capazes de cruzamento entre si. Esse é o primeiro tipo de processo de especificação, que aliás é bastante comum.

IRRADIAÇÃO E SELEÇÃO NATURAL

Outra noção pertinente é a de irradiação. Irradiação é simplesmente ir habitar outros lugares, outros ambientes diferentes. Ao se irradiar, uma espécie se espalha por diferentes âmbitos climáticos, o que implica novamente adaptação. A adaptação causa a diversificação, e a diversificação causa a seleção. A seleção natural é na verdade um fator terciário, não primário como pensava Darwin.

Para que esse tipo de evolução ocorra, a primeira coisa necessária é a irradiação. Se não houver irradiação, não haverá isolamento geográfico. Havendo isolamento geográfico, haverá adaptação e ocorrência de mutações que podem explicar as alterações morfológicas. Isto significa que haverá uma diversificação e, correlativamente, uma seleção. Seleção, porém, é um conceito relativo, pois depende do meio ambiente em que se viva. Os sobreviventes serão uns e não outros de acordo com o meio. A noção de seleção não é um conceito absoluto: os seres vivos que são mais aptos para sobreviver num ambiente não são os mais aptos para sobreviver em outro.

Seleção significa simplesmente que os genótipos (conjuntos de caracteres somáticos, morfológicos e corporais) mais adequados para o nicho são os que sobrevivem, e isso evidentemente tem a ver com a fixação de caracteres. Tanto a diversificação como a seleção de caracteres têm a ver com o genótipo mais adequado para cada nicho ecológico, de modo que aquilo que é bom para um determinado nicho pode não ser bom para outro. Pode-se dizer portanto que a seleção natural de indivíduos – tão enfatizada por Darwin – é um critério puramente relativo.

No processo de diversificação e estabilização dos caracteres morfológicos, chega um momento em que as mutações ou modificações genéticas já são de certo porte, e por isso a interfecundidade fica restrita aos membros de um certo grupo: nesse momento ocorre a especificação. Resta ainda um problema por resolver, conhecido sob o nome de evolução potencial: trata-se da necessidade de que as diversas modificações de caracteres morfológicos ocorram de modo coordenado e até certo ponto simultâneo, a fim de evitar o colapso do organismo, ou que ele se torne inviável. Esse problema talvez possa ser resolvido quando pudermos entender o código genético melhor do que o entendemos hoje. A questão é complexa e muito interessante, mas não é possível abordá-la aqui com detalhe. Entretermo-nos nesse assunto seria uma digressão que nos desviaria do que estamos dizendo sobre o caráter constitutivo da Ética humana.

Pois bem, na linha genética que chega até o Homem, as chamadas leis da evolução não valem. Não há diversificação, nem adaptação, nem seleção. No caso da hominização, o isolamento geográfico acaba não sendo relevante. O primeiro bípede – o Australopithecus – sempre viveu na mesma região e sob o mesmo clima: os fósseis encontrados estão todos na região centro-sul da África. Embora o Australopithecus não pertença ao gênero Homo, merece ser estudado por ser bípede, já que o bipedismo é também a característica primária do ser humano. É claro, portanto, que o Australopithecus não se irradiou nem se especializou, já que viveu três milhões de anos no mesmo nicho ecológico (isso aliás levanta sérios problemas a respeito do seu antecessor). Existem diversos tipos de Australopithecus, uns mais robustos do que outros, ou com capacidade craniana ligeiramente maior, mas mesmo assim sabe-se com certeza que são todos membros de uma mesma e única espécie. Mas de onde essa espécie veio? Não parece que tenha aparecido por irradiação, e nem tampouco que os seus caracteres derivem de algum processo de adaptação.

A coisa fica ainda mais complicada quando se trata das três espécies diretamente envolvidas no processo de hominização. Não podemos afirmar com rigor que nenhuma dessas três espécies – Homo Habilis, Homo Erectus e Homo Sapiens – tenha sido formada a partir de outra: nenhuma delas surgiu de um processo de especiação por adaptação ao meio. Em todas elas já há irradiação (o Homo Erectus foi encontrado na China, em Java, na Europa e na África; na América, porém, só existe o Homo Sapiens), mas nesses casos a irradiação não elimina a interfecundidade.

Esses animais se caracterizam por um paulatino crescimento e estruturação do cérebro, que se corresponde no tempo com a fabricação de ferramentas de pedra cada vez mais aperfeiçoadas. Isso é o que acontece ao passar do Habilis para o Erectus: a diferença entre os dois reside sobretudo no aumento do tamanho do cérebro.

INDEPENDÊNCIA EM RELAÇÃO AO MEIO AMBIENTE

Nos diferentes locais de escavações onde apareceram restos de indivíduos dessas três espécies, foram também encontrados instrumentos. A habilidade de fabricá-los indica que esses animais – essas espécies do gênero Homo – não seguiram a estratégia da adaptação, ou seja, puderam irradiar-se sem terem que se adaptar. Sua relação com o meio ambiente não exigiu nenhuma modificação morfológica que pudesse acarretar o aparecimento de uma espécie diferente. Isso pela simples razão de que eles, na medida em que o seu cérebro ia crescendo, estavam tornando-se cada vez mais independentes do meio ambiente, graças ao uso das mãos e à fabricação de utensílios.

No caso do Homem, portanto, o que ocorre não é só o descumprimento das leis da evolução alotrópica (diferenciadora de caracteres): de certo modo, esse novo tipo de evolução segue um caminho que vai em sentido contrário. A adaptação ao meio provoca a especificação (a fixação de novos caracteres morfológicos) porque esse é o único modo de sobreviver. Mas se o animal, pelo contrário, é capaz de enfrentar as diferenças climáticas usando instrumentos fabricados, então não tem por que sofrer alterações morfológicas adaptativas, tornando desnecessário esse tipo de evolução. A hiper-cerebralização não deve ser entendida como um procedimento adaptativo, mas como um modo de livrar-se da necessidade de adaptação.

Quanto mais a vida do animal vincula-se à fabricação (à técnica, afinal), tanto mais a unidade da espécie se mantém apesar das diferenças de nicho. Em nossa própria espécie isso é bem claro: um esquimó e um habitante dos trópicos são interfecundos, pertencem à mesma espécie.

Convém meditar sobre esse importante assunto. A Teoria da Evolução tem muita serventia quando se examinam as suas teses mais sólidas, mais elaboradas, selecionando as mais significativas. É importante perceber que o processo de adaptação ao meio não é uma explicação aplicável ao gênero Homo, pois o gênero Homo é técnico – fabrica instrumentos – e a fabricação de instrumentos debilita cada vez mais a necessidade de adaptação ao meio. Vê-se então que a linha evolutiva que leva ao Homo Sapiens pode ser descrita como um processo de independência em relação ao meio. Portanto, quando o biólogo aborda o problema de determinar qual o mecanismo segundo o qual a especiação se produz, deve admitir que aquilo que servia para explicar as outras espécies – as leis que descobre ao estudar a adaptação ao meio – não se aplica aos animais do gênero Homo. Isso porque esses animais se diferenciam somente pelo crescimento do seu cérebro.

O APROVEITAMENTO DO BIPEDISMO

Conforme o cérebro aumenta, os indivíduos do gênero Homo aproveitam a sua condição de bípedes (nisso o Australopithecus é o precedente), tiram proveito do fato de terem duas extremidades livres da função de andar.

A cabeça do animal bípede está erguida em relação ao corpo e o cérebro ocupa a maior parte do seu volume: é isso o que torna possível o crescimento cerebral. Além disso, o bipedismo envolve a aparição das mãos, aquelas extremidades aptas para múltiplos usos. Estritamente falando, a condição necessária para se construir instrumentos é a conexão entre o cérebro e as mãos. O crescimento do cérebro não significa apenas aumento de tamanho, mas aumento do número de neurônios livres (os que não estão comprometidos com funções vegetativas). Do ponto de vista da conduta, o aumento de neurônios livres só faz sentido se estiver relacionado com o uso das mãos. Sem controle cerebral, o Homem não pode fazer nada com elas, não pode fabricar instrumentos.

Cabe dizer que o Australopithecus era um bípede que não aproveitava o seu bipedismo; não usava as mãos praticamente para nada: não tinha uma indústria lítica. A única coisa que se encontrou junto aos fósseis de Australopithecus foram algumas pedrinhas, sem nenhuma modificação feita por ele. Ele certamente sabia bater com um pau, atirar pedras e coisas assim, mas as suas mãos não eram expressivas e com freqüência estariam flácidas, penduradas na ponta dos braços caídos. Com outras palavras: o Australopithecus ainda não sabia fazer instrumentos com esses instrumentos: o fato de ter mãos parece ter sido uma preparação para um aproveitamento posterior.

As mãos começam a ser úteis quando, nas espécies seguintes, o cérebro conecta com elas. Não sabemos como era o seu aspecto externo (as costumeiras representações gráficas têm ainda muito de imaginação). Atribuir-lhes uma configuração quase simiesca obedece a preconceitos ou a uma má interpretação de alguns fósseis. Se o Australopithecus era claramente bípede, as espécies posteriores não o seriam menos. Algum fóssil de Neanderthalensis dava a impressão contrária porque tinha as pernas arqueadas. Mas hoje se sabe que isso se deveu a uma deformação devida à artrite: era o fóssil de um indivíduo ancião, cuja sobrevivência demonstra que o ajudavam e cuidavam dele.

Os indivíduos da espécie Australopithecus seriam animais capazes de andar normalmente, e que quando não estavam usando as mãos ficariam parados ou sentados (sentar-se é outra maneira de aproveitar o bipedismo: sem bipedismo, de nada adianta sentar-se). Pegariam de vez em quando algo com as mãos, mas o seu uso das mãos era incomparavelmente mais tosco do que o nosso.

Se repararmos bem, veremos que estamos sempre usando as mãos: somos capazes de tocar piano ou violino (note-se a enorme complexidade cerebral que é necessária para realizar essa atividade), mas também de escrever, de fazer gestos, de associar um gesto expressivo a alguma expressão verbal, etc. A única época da vida em que o Homem parece ficar um tanto perplexo com as próprias mãos é a adolescência. E que faz o adolescente? Cruza os braços ou põe as mãos nos bolsos.

O Australopithecus não podia tirar proveito do seu bipedismo porque tinha um crânio muito pequeno. O aumento do cérebro, no entanto, só tem sentido prático quando se tem mãos, extremidades que sirvam para algo mais do que simplesmente andar.

O bipedismo é, antes de mais nada, uma desespecialização. Tomás de Aquino notou que a mão não tem nenhuma função especializada: utilizando as noções aristotélicas de ato e potência, disse que a mão – comparada com a garra ou com o casco dos quadrúpedes – é puramente potencial. O casco de um animal só serve para uma coisa: é como um machado. Segundo Aristóteles, o ato do machado é o fio de corte e todo o resto é potencial, pois o machado foi feito para cortar. O casco só tem um uso e nada mais; a garra talvez possa também ser usada para rasgar, mas nada além disso. Ambos estão em ato, portanto. E a mão? Para que foi feita? A mão está aberta a uma grande variedade de atualizações: é um órgão potencial. Precisamente por isso a mão é o instrumento dos instrumentos, com ela podem ser confeccionados todos os instrumentos, como também aponta Aristóteles.

No fundo, isso que Aristóteles diz sobre as mãos é o que se deve ter em conta para distinguir o processo de hominização do processo de especiação ou especialização de quaisquer outras classes de animais: moscas, répteis, eqüinos, etc. Nestas especificações pode ter ocorrido seja o que for, e as suas leis próprias serão as que já mencionamos. Mas quando se trata do processo de hominização, o que mais importa é a conexão do cérebro com as mãos. É justamente por isso que as leis da evolução alotrópica não valem para esse processo, pois o gênero Homo, em vez de adaptar-se ao ambiente, adapta o ambiente a si próprio.

Esse não se adaptar ao ambiente é possível em virtude da sua capacidade criadora de instrumentos, que por sua vez deriva da correlação entre as mãos e o cérebro, cuja base é o bipedismo. Nos outros animais, a adaptação trouxe consigo grandes modificações corporais; no caso do Homo, a evolução concentrou-se no crescimento do cérebro. Sem as mãos, o crescimento do cérebro não teria servido para nada e biologicamente não faria nenhum sentido. E sem a técnica, o bipedismo é inútil.

Esses vínculos ocorrem no ramo que vai do Habilis ao Sapiens, no qual – insisto – a adaptação morfológica ao nicho ecológico fica em suspenso. O que serviu como elemento adaptativo foi o instrumento: foi ele quem substituiu a estratégia alotrópica.

A DIMINUIÇÃO DOS INSTINTOS

Conforme tudo isso vai acontecendo, o comportamento vai centrando-se cada vez mais na correlação entre cérebro e mãos, e nessa mesma medida tornando-se cada vez menos instintivo. Isso porque usar as mãos não depende só dos instintos: exige além disso algum tipo de componente cognoscitivo – algum tipo de conhecimento – sem o qual é impossível utilizar recursos e construir coisas. Quando uma certa forma de conduta é característica da espécie, não se pode dizer que ela seja alheia à Evolução: ela deve ser considerada como inseparável de um certo tipo de Evolução. A Técnica não é alheia à vida: é uma importante característica de um peculiar modo de vida que chamamos de hominização. A Técnica e o gênero Homo são inseparáveis, entendendo por Técnica simplesmente o fazer instrumentos com instrumentos. Fazer instrumentos com instrumentos permite, por exemplo, que o Homem se agasalhe: ele corta umas peles, deixa-as curtir, e cobre-se com elas, vencendo assim o frio; se faz calor, ele as tira. Isso é ser independente do meio.

É claro que essa independência do meio é menor no Habilis, visto que a sua Técnica é elementar, mas nele já se nota uma diminuição da instintividade e a correspondente não-especialização do corpo. Esse assunto já foi percebido por vários pensadores (seu descobrimento por biólogos modernos não é nenhuma novidade): Platão, Aristóteles e os filósofos do século XIII já falaram disso, assim como os escolásticos espanhóis do século XVI, que têm estudos muito interessantes sobre esse caráter inespecífico do corpo humano.

Arnold Gehlen, na sua importante obra O Homem, insiste na mesma idéia: o homem é um ser de instintos pouco firmes. A instintividade vai tornando-se cada vez mais indeterminada porque a conduta vai sendo semeada de relacionamentos e situações que permitem a produção de instrumentos. Ninguém faz um instrumento com instrumentos instintivamente. As colméias das abelhas são produtos feitos por instinto, mas não são propriamente instrumentos planejados, construídos com outros instrumentos: não são instrumentos de segunda ordem. É por isso que a mão é o instrumento dos instrumentos. Na confecção da cerâmica intervêm a mão, o barro – a mão modela o barro – e o fogo. É notável que o ser humano, o gênero Homo, não tenha medo do fogo. Enquanto todos os outros animais fogem do fogo, o Homem cultiva-o, mantém-no e com ele vai fazendo coisas: instrumentaliza o fogo.

Por conseguinte, o processo evolutivo que estamos considerando não é um processo de adaptação, pois nem sequer comporta determinações ou modificações morfológicas. Comporta antes indeterminação. A conclusão que podemos tirar de tudo isso é que o organismo humano está feito para trabalhar, está destinado a fazer: o elo de ligação entre o Sapiens, o Erectus e o Habilis é caráter de artesão, de Faber. É por isso que é possível falar de hominização, de um peculiar processo evolutivo que envolve essas três espécies diferentes, aparecidas sucessivamente. A chave de tal processo é justamente a crescente independência do meio ambiente externo, que só é possível na medida em que a construção de meios ou instrumentos passe a fazer parte da vida.

O que aqui se pretende não é montar uma explicação mais ou menos plausível: trata-se de compreender o que é que existe na morfologia humana que não pode ser reduzido a nenhuma outra morfologia. O Homem torna-se espécie de uma maneira muito curiosa, somente por meio de modificações que têm a ver com o crescimento cerebral, sem adaptações morfológicas ao ambiente: homens que vivem em climas muito diferentes não se adaptam a eles do ponto de vista evolutivo normal. No fim das contas, o que se conclui é que o Homem habita um mundo instrumental.

O significado biológico de Homo, portanto, é o de animal que domina o seu entorno, o seu ambiente. Esse é um acontecimento que não ocorre com nenhum outro tipo de ser vivo. As leis da Evolução – irradiação, adaptação, fixação de caracteres, seleção natural – não valem para o Homem porque ele é capaz de fazer coisas: essa é uma característica intrínseca sem a qual não há hominização. Não podemos considerar a nossa atividade técnica como sendo um acréscimo acidental, dispensável, do qual poderíamos prescindir por ser estranho à nossa constituição corporal. Muito pelo contrário: ela forma parte da nossa biologia.

INTELIGÊNCIA E TRABALHO

O Homo é um gênero de seres vivos que atinge o seu cume quando ocorre o processo de humanização, isto é, quando o ser vivo torna-se dono da sua própria conduta. A humanização – a aparição da inteligência e da liberdade do Homem – é coerente com o que foi dito do ponto de vista morfológico. Não se trata, por assim dizer, de um corpo como o de qualquer outro animal, que o máximo que pode fazer é estabelecer um equilíbrio homeostático com os estímulos recebe do meio ambiente. O Homo não tem um corpo fechado, mas aberto: e aberto não somente ao ambiente, mas também ao conjunto das coisas que ele mesmo constrói.

O Homem – dizia Leibniz – é um petit dieu, um pequeno deus, porque é capaz de criar: se ele não produz nada, se não confecciona alguma coisa, dizer que é criativo carece de sentido. Pode-se criar cada vez mais: uma sinfonia, um poema, um automóvel… mas isso só é possível porque o Homem é morfológica e vitalmente um trabalhador. A Bíblia diz que o Homem foi criado ut operaretur, para trabalhar e para dominar o mundo (o que é o mesmo). O Homem, feito para dominar o mundo, vive trabalhando.

Quanto a isso de o Homem viver trabalhando, não nos iludamos: há pessoas que não trabalham porque são preguiçosas. Aqui começa a aparecer uma noção ética que teve um grande papel na Ética moderna: a de homem preguiçoso. Aristóteles, na Ética a Nicômaco, diz que ser preguiçoso é um vício; Tomás de Aquino, nas Quaestiones Disputatae de Malo, acentua ainda mais a detenção da vida humana que a preguiça traz consigo. O homem preguiçoso, o homem que não trabalha, que não faz nada, biologicamente é um parasita: não está vivendo como homem. Imaginemos se a Humanidade inteira dissesse: estamos em greve a partir de agora. Quanto tempo duraria a Humanidade nessa situação? Aproximadamente uma semana. Entre outras coisas não haveria comida, porque plantar, pastorear, cozinhar, etc. também é trabalhar.

O Homem é independente do meio. Paralelamente, Aristóteles observa que o Homem não se alimenta só por instinto, mas come com arte: a primeira das Artes é a Culinária. Por ser racional, as satisfações sensíveis do Homem não são como as do animal: é por isso que a Arte (Culinária, Música, Pintura, etc.) vincula-se à sensibilidade. Por não gostar de carne crua, o Homem inventa uma técnica para assá-la. Para o Sapiens, Arte e Técnica são inseparáveis.

Há um setor da Humanidade que não trabalha porque não pode: as crianças. Por não estarem ainda em condições de trabalhar é necessário cuidar delas, alimentá-las, educá-las. Isso significa também outra coisa: que cada homem é capaz de produzir mais do que ele próprio precisa, que é capaz de produzir para os outros. Como já se vê, trabalho e comunidade são solidários. Essa é uma relação essencialmente ética e é a partir dela que as ciências econômicas e sociológicas deverão articular os seus respectivos métodos.

Atualmente a população economicamente ativa é de 35 por cento da população total. Se cada homem só fosse capaz de satisfazer as suas próprias necessidades, a espécie humana já estaria extinta há muito tempo. Além de ser capaz de trabalhar para outros, o Homem deve fazê-lo, porque de outra forma não estaria atendido durante o longo período que vai do seu nascimento até a sua emancipação prática. A idade em que o Homem adquire viabilidade prática depende de cada cultura, mas antes dos dez ou doze anos ninguém está em condições de tomar parte em atividades produtivas. Para desempenhar atividades complexas na nossa Sociedade é necessária uma preparação de pelo menos 23 ou 24 anos. Durante essa etapa da vida, o Homem forma-se para chegar a ser hábil: capaz de cumprir tarefas. Se isso não fosse necessário, a Universidade seria um luxo bizarro.

O trabalho é um tema ético porque não é um processo automático. A Ética começa a sua caminhada partindo deste fato: o Homem só é compreensível se levarmos em conta que a sua vitalidade se conecta com a sua potencialidade manual. Isso torna o Homem produtivo em todos os sentidos. Produtivo significa dominador do mundo: livre, portanto, da necessidade básica de ter que se adaptar; significa que está dotado de uma iniciativa própria dirigida a suscitar obras que de outro modo não existiriam. É por isso que o Homem é senhor do mundo e controlador da sua própria conduta: está constituído por Deus dessa maneira. Chama a atenção a quantidade de assuntos humanos de todo tipo que se esclarecem quando começamos a levar isso em conta.

Certamente é possível afirmar que estou exagerando. Afinal, trabalhamos porque não há outro jeito: esse prestígio do trabalho é uma mania da nossa época concreta. Existiram outras culturas mais antigas nas quais os homens trabalhavam muito pouco. Estamos numa situação de ativismo um tanto neurotizante, que leva ao esgotamento e à depressão. Poderíamos inclusive pensar: somos vítimas de convencionalismos sociais que nos oprimem. Talvez o enfoque ocidental – ou o japonês – seja um exagero, uma hipertrofia: mas é hipertrofia de algo que é constitutivo do ser humano. O Homem nunca deixa de ser um trabalhador, um criador do seu próprio mundo: habita nele sem necessidade de adaptar-se ao meio. Ser loiro ou moreno, alto ou baixo, mais ou menos gordo conforme a dieta, ter maior ou menor capacidade pulmonar, possuir mais ou menos hemácias no sangue conforme se viva ao nível do mar ou nas montanhas… tudo isso são diferenças secundárias e não diferenças específicas.

Estamos vendo surgir toda uma série de normas que, sendo biológicas, são no entanto muito peculiares. Por isso sustento que uma Ética desvinculada da vida – uma Ética formal, por assim dizer – não é uma Ética completa, mas uma falsa Ética. A raiz da Ética está na vida do Homo. Um cão não tem Ética nem pode tê-la, nem tampouco uma abelha: ambos comportam-se vitalmente em virtude de umas adaptações, de uma constituição que funciona em regime de equilíbrio com o meio circundante, e isso é tudo. O Homem mal consegue manter um equilíbrio desse tipo: o que ele tem que fazer é transformar o meio. O Homem está obrigado a trabalhar.

Se o Homem não trabalhasse teria que se adaptar, mas o seu corpo não está feito para isso, não é biologicamente competitivo. É da própria essência do Homem como ser vivo esse estar aberto ao mundo, modificando o seu entorno através da sua ação. O Homem exerce atividades racionais; nenhum outro animal exerce esse tipo de atividade.

TECNOLOGIA, LINGUAGEM E ÉTICA

Nossos ancestrais do ponto de vista morfológico, o Homo Habilis e o Homo Erectus, com certeza se extinguiram porque a sua capacidade fabril não foi suficiente para competir com a adaptação. Neles a estratégia de modificação do entorno pela ação competia com a estratégia de adaptação, e certamente prevaleceu a segunda. Essas espécies eram pouco viáveis justamente porque se lançaram na estratégia evolutiva não-adaptativa sem terem ainda inteligência; e ao serem pressionadas por urgências adaptativas, extinguiram-se. Evidentemente tais urgências não causam a extinção do Homo Sapiens, cuja sobrevivência está ameaçada justamente pela razão oposta: ele modifica tanto o seu ambiente que pode vir a torná-lo inabitável. Com outras palavras, nós não temos nicho ecológico nenhum: o que temos são problemas de tipo ecológico.

O problema ecológico é um problema moral causado por atividades das quais somos os responsáveis. Responsabilidade é uma categoria ética. Não existe nenhum outro animal que tenha problemas ecológicos ou que seja capaz de provocar uma crise ecológica. O único que pode fazer isso é o Homem (atual), porque ele é um Super Habilis. Além do mais, esse é um problema exclusivamente característico da Civilização Ocidental, cujo crescimento tecnológico traz consigo mais um outro problema ético de primeira categoria: o relacionamento entre os países desenvolvidos e os subdesenvolvidos.

É interessante ressaltar não é somente a Ética o que nos vem à cabeça quando falamos do trabalho. Estamos começando a perceber que o trabalho – não o dos hominídeos, mas o do Homem – tem muitas outras implicações: dá lugar a problemas muito originais e de grande alcance. Tudo isso devido precisamente ao fato de que o processo de humanização não é o processo de hominização. O processo de humanização, embora se apóie no de hominização, difere dele por não ter um significado evolutivo, como veremos a seguir.

Por outro lado, quando não se capta o profundo valor vital das leis éticas, talvez pareça que se as desrespeitarmos ou as ignorarmos não acontece nada. Mas acontece sim, porque a Ética liga-se muito diretamente à vida humana, à atividade humana. Comparado a um homem, um animal é um ser inerte. O Homem é um ser muitíssimo mais vivo que um animal, precisamente porque está chamado à ação; sua vida não lhe é simplesmente dada: ele tem que dirigi-la ativamente, pois do contrário se extingue. Ao comparar a atividade humana com a do animal, percebe-se que o animal obedece sempre à lei do mínimo esforço. Um leão, por exemplo, fica sempre deitado: só levanta-se para comer, beber ou procriar. O que ele faz no resto do tempo? Nada. Porque em sentido estrito um leão não faz nada: somente o Homem é quem faz alguma coisa.

Não podemos pensar que o trabalho é uma invenção histórica nossa, e que poderíamos eliminá-lo. Nem tampouco podemos pensar que o trabalho é um castigo devido ao pecado original: seria como se a vida de Adão no Paraíso tivesse sido uma vida ociosa. Se pensamos um pouco, Adão deitado sem fazer nada no Paraíso é simplesmente um absurdo. Embora às vezes nos passe pela cabeça que Adão era feliz porque tinha tudo ao alcance da mão, não foi bem assim. Adão – ele certamente cometeu o pecado original quando ainda era jovem, ou seja: antes de ter filhos com Eva – tinha recebido de Deus o encargo de realizar uma tarefa importantíssima: dar nome às coisas. Isso foi a primeira coisa que fez. Aliás, dar nome a uma coisa sempre significa exercer um certo ato de posse.

A linguagem assemelha-se ao trabalho. Hoje em dia fala-se muito de pragmática lingüística (uso prático e utilitário da linguagem): no fim das contas, é nisso que se resume a chamada Filosofia Analítica da Linguagem. A linguagem está aí para ser usada, e a primeira coisa que faz é impor e relacionar nomes (e verbos): por isso costumo dizer que a mais pura forma de Técnica é a linguagem. Os animais não falam. A linguagem tem a ver com as mãos e com o cérebro: escrevi sobre isso no meu livro Quem é o Homem, onde também exponho por que a boca tem a forma que tem, como ela permite a articulação dos vocábulos e portanto a discriminação entre sentidos verbais.

Unindo Técnica e linguagem, obtemos o governo, a ação de governar: faça isto!. Trabalho mais linguagem é igual à direção. A linguagem serve acima de tudo para dar instruções: é assim que se ensina, que se forma o ser humano. Como formar uma criança sem empregar a linguagem? Além disso a linguagem possibilita o trabalho em equipe: a organização do trabalho. Aparecem então outros temas éticos centrais como mandar e obedecer.

O Homem pode considerar-se uma espécie única precisamente porque tem inteligência: é evidente que sem inteligência não é possível falar. Quando um homem fala, a sua inteligência toma contato com os seus recursos corporais ativos; quando alguém diz: põe esta peça ali, encaixe essa peça na outra, o que faz é dar instruções a outro. Dá-se então uma relação recíproca: falar e escutar.

Surge então um problema ético decisivo: a diferença entre dizer a verdade e mentir. A linguagem pode ser usada de qualquer maneira? Não. Deve-se utilizar a linguagem seguindo uma norma: a veracidade. Quem não usa a sua linguagem de modo veraz está destruindo a própria linguagem. Destruir a linguagem é tornar impossível a cooperação humana, e portanto atrapalhar o desenvolvimento e a organização do trabalho. Costumo dizer que o subdesenvolvimento não é conseqüência da falta de capacidade, mas do excesso de mentira: ninguém confia em ninguém. Quando se pede para alguém fazer alguma coisa e essa pessoa diz que vai fazer mas depois não faz, e se à nossa pergunta: por que você não fez o que lhe pedi? ela responde: porque nunca sei dizer que não, então essa pessoa está mentindo através das suas obras e rompendo as condições básicas do trabalho em comum.

A essa altura aparecem outros problemas éticos. É difícil viver a justiça distributiva quando não se conhecem as aptidões que cada um tem. Dar a cada um o que é seu de acordo as suas respectivas necessidades, encomendar a cada um o encargo que melhor consiga realizar, são condições indispensáveis para o correto funcionamento social. A Ética não é moralina: ela estabelece as leis do agir humano cujo descumprimento necessariamente leva o Homem a deixar de comportar-se como tal.

Tudo o que dissemos até aqui foi o começo de uma exposição do modo como a Ética aparece na vida humana: uma visão da Ética a partir da Biologia. Antes de mais nada, o Homem é um ser ético porque a hominização não é um processo de adaptação: isso pode parecer estranho à primeira vista, mas de fato é assim. O Homem não é um ser vivo graças à adaptação, mas porque ele é um Faber, porque trabalha: caso contrário, a espécie não pode subsistir. O Homem depara-se imediatamente com problemas éticos inseridos sobretudo na sua própria biologia: uma biologia da qual faz parte a Técnica, uma biologia tecnológica. Por isso uma Biotecnologia à qual o Homem se subordine é uma contradição: a idéia, por exemplo, de modificar o código genético humano é uma loucura se a Ética for deixada de lado.

Fonte: Livro: Ética – Una versión moderna de los temas clásicos
Tradução: Quadrante

Share